Em turnê, Caetano olha para um grupo esquecido pelos progressistas
Em artigo enviado à coluna, o cientista político Rodrigo Vicente Silva trata da ligação do músico com os evangélicos
“O fato de vir crescendo enormemente o número de evangélicos no Brasil é uma coisa que tem imensa importância para mim. Por isso, vou cantar o amado louvor do pastor Kleber Lucas, ‘Deus Cuida de Mim’.”
De tudo que vi e ouvi no show de Caetano esta certamente foi a parte que mais me impressionou. Até aquele momento do Show, saltava aos olhos as imagens que se cruzavam às vozes dos irmãos Veloso. Fotos da infância, da família, de momentos áureos da vida e da carreira de ambos. Àquela altura do espetáculo, Bethânia havia saído e dado lugar ao irmão, que embalava a multidão de Curitiba, que o ovacionava na Pedrerira Paulo Leminski com canções que ele nos presenteia em quase 50 anos de carreira.
No momento em que a frase de Caetano despontou no show, dando a entender que haveria uma canção, talvez um hino evangélico, como de fato o foi, fiquei atônito, tentado entender o que havia ali. Acho que o sentimento era o mesmo da maioria.
Um amigo que havia me acompanhado para assistir ao espetáculo, olhou-me e veio até mim: há um quê de anticlímax, não? Disse ele.
Os amigos com quem estava e certamente boa parte dos que estavam presente no show são, de alguma forma, completa ou parcialmente pessoas que se dizem progressistas. O que senti, contudo, é que nos definimos de tal forma, mas até a página dois, o que talvez não seja novidade para ninguém, mas impacta quando somos confrontados.
Todos cantamos as músicas de Caetano e de Bethânia imersos em uma memória afetiva que remetia dos tempos duros da Ditadura aos momentos de grande esperança e entusiasmo da reabertura política. A cada música havia algo de simbólico e maravilhoso, que nos remetia a muitos lugares e tempos.
Mas quando ouvimos Caetano cantar a música do pastor Kleber Lucas o sentimento foi outro. Havia estranheza. Havia olhares desconfiadas e frases como as de meu amigo. Havia em mim também uma desconfiança. Mas senti que havia igualmente algo muito interessante instaurado ali: Caetano nos confrontava com um público que cresce a cada dia e que a despeito de estigmas é repleto de pessoas que têm suas histórias, seus hábitos e suas crenças.
Não só. Eles os têm, na mesma medida em que católicos, judeus e outros tantos credos também possuem sua forma de professar e, claro, de se expressar. São inúmeros em quantidade, assim como o são em jeitos de pensar.
Mais do que adentrar às nuances do que é ser evangélico, de quantos são e de como pensam, prefiro ficar com o recado de Caetano Veloso, que aos 82 anos se reinventa e faz o que sempre fez: permanece na vanguarda e nos lembra que os evangélicos existem e que é preciso olhar para o lado e ouvir o diferente. Caetano e só Caetano poderia fazer com tanto talento.
* Rodrigo Vicente Silva é mestre e doutorando em Ciência Política (UFPR-PR). Cursou História (PUC-PR) e Jornalismo (Cásper Líbero). É editor-adjunto da Revista de Sociologia e Política