Das máquinas de votar ao blockchain – Parte 3
O mestre em Direito Constitucional André Silveira retrata a tecnologia de Blockchain como elemento fiduciário em um novo processo eleitoral
Nesta terceira e última parte sobre a evolução do processo eleitoral no Brasil, partiremos para a análise da tese de adoção de institutos e disposições normativas, em Direito Comparado, a qual considera tanto o prestígio quanto a cautela relativa às idiossincrasias que permeiam cada ordenamento jurídico. À esteira disso, este tópico apresenta — apenas com foco exemplificativo — como algumas jurisdições estrangeiras têm incorporado elementos para a votação na modalidade online.
Consideramos um exemplo relevante o da Suíça, que autoriza a implementação de projetos-pilotos de votação online nos Cantões — nomenclatura equivalente aos estados-membros daquele país — limitados às respectivas regiões geográficas, em atenção ao art. 8a do Federal Act on Political Rights. A lei suíça estabelece que, a fim de possibilitar a votação pela via online, deve-se assegurar a coibição de abusos, especificamente quanto ao sigilo e à contagem da totalidade dos votos.
Nos Estados Unidos da América, merecem atenção algumas iniciativas legislativas do ano de 2021, como a “Nevada Assembly Bill 163”, de 22 de fevereiro de 2021, e a “New York Assembly Bill 4332”, de 1º de fevereiro de 2021. A nova lei do Estado de Nevada permite que, com a aprovação do Secretário de Estado, utilize-se um sistema eleitoral lastreado na tecnologia de Blockchain. A lei novaiorquina estabelece que o Conselho Estadual de Eleições deverá, no prazo de um ano, apresentar estudo quanto ao uso da tecnologia de Blockchain, para fins de proteção do registro de votos e de resultados eleitorais. Essa avaliação contará com o auxílio de especialistas em (i) tecnologia de Blockchain; (ii) fraude a votações; (iii) cibersegurança; (iv) registro de votações; e (v) resultados de eleições.
É também de salutar importância, para fins de comparação, notarmos que ao menos quatro Estados norte-americanos aderiram ao voto online, por meio da tecnologia de Blockchain, quais sejam: West Virginia, Colorado, Oregon e Utah, tendo sido este último Estado o único a utilizar o novo sistema nas eleições presidenciais de 2020. Até este momento, não há qualquer indicação de irregularidades com o procedimento adotado em Utah.
Possivelmente, um dos maiores referenciais no mundo, para a votação online, via tecnologia Blockchain, seja a Estônia. Apesar de o país ter conquistado sua independência da União Soviética apenas em 1992, desde 2005 o Báltico realiza eleições online. A norma que disciplina a questão é a “Riigikogu Election Act”, a qual, em seu Capítulo 7º, determina que o sistema utilizado deverá ser compatível com os mais difundidos sistemas operacionais da rede de computadores. Assim, para os estonianos, é possível votar pelos sistemas Windows, Linux e MacOS.
Até aqui, podemos notar que, apesar de não existirem barreiras legais intransponíveis à execução da forma de votar pela via online, a confiança, pelo demonstrado na parte I desta análise, apresenta-se como ponto fulcral à possibilidade que aqui se comenta. Acreditamos que uma nova tecnologia seja capaz de proporcionar elemento fiduciário às eleições em plataformas online: o Blockchain.
Desde o seu surgimento, a tecnologia de Blockchain causa grande interesse de agentes econômicos, por conta de seu inequívoco potencial disruptivo, e é considerada por muitos a maior inovação tecnológica depois da internet . Observando esse potencial, em 2015, os bancos Barclays, JP-Morgan, Credit Suisse, Goldman Sachs, State Street, UBS, Royal Bank of Scotland, BBVA e Commonwealth Bank of Australia publicaram um plano para colaborar em normas comuns para a tecnologia de Blockchain: o consórcio R3.
A capilaridade e aceitação do uso da tecnologia de Blockchain permanece em notável crescimento nos dias atuais. É o que se observa, por exemplo, de pesquisa divulgada pela Deloitte Touche Tohmatsu Limited (Delloite), maior sociedade empresária global de auditoria financeira. A pesquisa, publicada em 19 de agosto de 2021, consultou 1280 profissionais do mercado financeiro de diversos países, tais quais Estados Unidos da América, Brasil, China e Alemanha, dividindo-os entre os que já possuíam alguma informação sobre a tecnologia e os que já haviam implantado-a em seus negócios. Como média geral desses profissionais, notou-se que 81% consideram que a tecnologia de Blockchain é amplamente escalável e atingiu níveis altos de difusão (mainstream adoption).
No Brasil, especialmente no âmbito público, a utilização da tecnologia de Blockchain tem recebido destacada atenção. Em maio de 2021, a Receita Federal do Brasil passou a adotar a rede de Blockchain do Mercosul, para fins de comércio exterior. No mês de agosto, a autoridade tributária, em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), lançou plataforma lastreada na tecnologia de Blockchain para possibilitar o compartilhamento, entre órgãos governamentais e entidades conveniadas, de dados de pessoas naturais e jurídicas constantes das bases do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), do Cadastro Nacional de Obras (CNO), e do Cadastro de Atividade Econômica da Pessoa Física (CAEPF).
Pelo lado do Poder Judiciário, também se percebe aumento da aceitação do uso da tecnologia de Blockchain. Em Aviso de Dispensa de Licitação publicado no Diário Oficial da União de 2 de agosto de 2021, o Tribunal Superior do Trabalho publicizou a contratação da Dataprev, para o uso de plataforma de Blockchain, com o objetivo de consulta de dados de CPF e CNPJ.
Com base nessas informações é possível — e esperável — que o leitor indague, em um intento conceitual: o que é a tecnologia de Blockchain?
Em um sistema baseado na tecnologia de Blockchain, todas as transações são registradas em um bloco, visível para os participantes da rede, os quais revisam e validam a transação, a qual, ao ser validada, é conectada a sua antecessora, criando uma cadeia de blocos. No processo de votação, seria a Justiça Eleitoral quem deveria ser responsável pela higidez desse processo de criação e validação de registros imutáveis.
A forma de registro é proporcionada a partir de uma cadeia de assinaturas digitais pública, distribuída e transparente. Uma vez validadas e adicionadas à cadeia de blocos em ordem cronológica, pela Justiça Eleitoral, as informações não poderiam ser removidas ou alteradas do banco de dados.
Esses componentes da tecnologia de Blockchain tornam impossível a alteração de alguma informação sem que haja a modificação em toda a cadeia. Portanto, a legitimidade dessa tecnologia não se encontra apenas nas referências ao bloco anterior, mas em todas as transações realizadas. Consequentemente, ao usar todas essas técnicas de processamento, a tecnologia de Blockchain permite que remetente e receptor não necessitem confiar um no outro para que uma transação ocorra.
Dessa maneira, são características da tecnologia de Blockchain: a imutabilidade, a transparência, a programabilidade, o consenso descentralizado e a confiança distribuída.
Feitas essas notas introdutórias, importa saber sobre o uso da tecnologia de Blockchain para a votação em meio virtual, respondendo-se à seguinte questão: a tecnologia de Blockchain poderia ser o elemento fiduciário a legitimar um processo eleitoral online?
Melanie Swan, pesquisadora da University College London, indica a existência de três hipóteses de uso para tecnologia de Blockchain. Na “Blockchain 1.0 (Moeda)”, haveria a implantação dessa tecnologia em aplicações relacionadas ao dinheiro, como transferência de moeda, remessa e sistema de pagamento digital. No caso da “Blockchain 2.0 (Contratos)”, valer-se-ia da tecnologia de Blockchain em aplicações econômicas, de mercado e financeiras, como ações e empréstimos. Na última hipótese, da “Blockchain 3.0”, a tecnologia seria útil a aplicações governamentais – especificamente o que nos interessa para este artigo.
Ao longo dos últimos anos, em observância à grande veiculação de uso da tecnologia de Blockchain, diversos pesquisadores avaliaram a possibilidade de que as eleições passassem a utilizar esse meio. Com isso, estabeleceu-se alguns padrões ideais para possível aceitação de um modelo de voto “blockchain-based”, como a transparência, a mobilidade, a segurança contra a coerção de eleitores e a descentralização.
Kibin Lee, por sua vez, apresenta a tecnologia de Blockchain como meio alternativo para sistemas de voto em função do aumento da transparência do processo, uma vez que o Blockchain público permite a consulta de dados a qualquer pessoa.
O trabalho de Marcelo Moro da Silva, para obtenção de título de Mestre em Engenharia de Computação, intitulado “Uma proposta de sistema de voto baseado em Blockchain com autenticação de usuário por meio de biometria, que guarda consigo certo ineditismo nas publicações acadêmicas, explica que: “a exemplo da solução proposta no trabalho de Yavuz et al. (2018), neste trabalho o registro do voto é realizado por meio de um Smart Contract Blockchain Ethereum, que garante que o programa utilizado para o registro de um voto não possa ser alterado, aumentando desta forma a confiança no sistema”.
Em seu trabalho, o mestre em Engenharia da Computação apresenta etapas, demonstradas por meio de imagens, como seria possível a implementação da tecnologia de Blockchain, para eleições brasileiras, com o uso de aparelho celular, a partir da biometria – que já é de cadastro obrigatório na Justiça Eleitoral. São cinco passos assim definidos: primeiro: autenticação e acesso; segundo: autenticação por biometria; terceiro: voto; quarto: comprovante. E, por último, o quinto: identificador único.
Todos esses procedimentos, que culminam no identificador único da transação, permitirá ao eleitor consultar seu voto por meio da internet e confirmar se o candidato registrado no voto é realmente o escolhido por ele. Outro ponto importante diz respeito à imutabilidade, característica da tecnologia Blockchain, aumentando a confiabilidade e a segurança do sistema. Embora o eleitor possa consultar sua transação, todos os dados existentes não comprometem o sigilo do voto, tendo em vista que a chave pública da conta Blockchain utilizada na transação é de conhecimento exclusivo do eleitor. Desta forma, há ganhos importantes em termos de auditoria e confiança.
Pelo lado da norma constitucional e da norma infralegal, não notamos indicações proibitivas à alteração na maneira de votar. Ao contrário, o caminhar dos textos legais faz-nos crer que o exercício do voto pela via online possua aderência aos objetivos e princípios buscados em sede do processo eleitoral, porque pode proporcionar celeridade, segurança e transparência. Dessa maneira, os limites seriam somente os impostos pela anualidade da norma eleitoral (art. 16 da CF/88) e da legalidade (art. 37 da CF/88).
Por outro lado, é preciso rememorar que, a partir das pesquisas analisadas, pudemos notar que mudanças na forma de votar encontram limites sociopolíticos na percepção que o brasileiro tem das práticas corruptivas perpetradas em seu país e na falta de confiança institucional dela derivada.
Assim, respondendo-se ao questionamento inicial, “seria possível a adoção de modelo online de votação no Brasil?”, consideramos que o voto online seja um horizonte possível ao processo eleitoral brasileiro. Todavia, percebida a escassa confiança do eleitorado nas instituições democráticas do país, a nova maneira de votar deve ser orientada à demonstração de idoneidade do processo. Em compasso com o que se tem realizado em jurisdições estrangeiras, e considerando os trabalhos aqui avaliados, notamos que a tecnologia de Blockchain possa ter as características necessárias à atribuição de fidúcia ao voto realizado à distância e online.
*André Silveira é mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Público pelo IDP e sócio do Sergio Bermudes Advogados