A pandemia colocou à prova a noção de ética
Daniel Lança analisa padrões comportamento em meio a pandemia e aponta um debate necessário sobre ética
Se já não é novidade que o novo normal em nada se compara ao mundo pré-pandêmico, convém justa reflexão sobre mudanças de paradigma menos óbvias, decorrentes das tamanhas transformações que vivenciamos nos últimos meses. Mesmo ainda estando no centro do furacão, alguns padrões de comportamento social permitem levantar a provocação de que a noção fundamental de ética está colocada à prova.
O conceito filosófico de ética, por vezes mal compreendido, não diz respeito aos valores que norteiam a ação do indivíduo em si mesmo – este perpassa a noção de moral. Ética diz sempre respeito ao outro, isto é, ao agir humano no mundo que orienta como nos comportamos coletivamente.
Só falamos em ética porque vivemos em comunidade; se vivêssemos sozinhos no mundo, não haveria por que discutir ética porquanto não há convivência coletiva. Portanto, ética está intrínseca no respeito, na convivência com a diferença e na coabitação pacífica e harmoniosa entre seres humanos. Tal conduta fará o bem coletivo? Se sim, esta é uma atitude ética; se não, antiética.
Para colocá-la em prática, é preciso, sobretudo, exercitar a empatia, vale dizer, colocar-se no lugar do outro. Sua ideia principal pode ser sintetizada no dito popular de que não faço contigo o que não gostaria que fizessem comigo.
Nestes estranhos tempos que vivemos – infelizmente – as noções de ética e empatia aparentam estar sob tensão. A pandemia desnudou a conduta antiética de quem, por exemplo, se recusa publicamente a não utilizar máscaras; estas são consideradas equipamentos de proteção não apenas de si, mas evitam especialmente o contágio comunitário. Quando alguém renuncia o uso das máscaras – ou aglomera irresponsavelmente – dá um recado claro: não me preocupo comigo nem com o outro.
Se fosse essa uma doença não contagiosa, seria perfeitamente compreensível ao indivíduo escolher não proteger-se. Todavia, o debate é particularmente exponenciado pelas características da Covid-19: um vírus altamente contagiante e, por vezes, silencioso – que pode reagir assintomaticamente no organismo de seu portador e, ainda sim, infectar outros de maneira oculta.
A mesma lógica serve para aqueles que não desejam ser vacinados contra o coronavírus. Uma vez desmistificadas as notícias falsas (como as que as vacinas disponíveis no Brasil são experimentais e potencialmente prejudiciais à saúde individual), não há outra razão que não a evidente antiética. Já ouvi quem diga: “se posso ter reações adversas, melhor não vacinar” ou “sou saudável e não terei sintomas graves; não faço questão de vacinar”. Em ambas as frases, o pressuposto é exclusivamente individual, sem qualquer preocupação com a infecção comunitária e sem qualquer consternação com a pressão sobre o sistema de saúde, por exemplo.
Tais comportamentos, refletidos ou não, arrasam a terra da convivência coletiva pacífica a afunda o debate para o nível da liberdade individual, inconsequente e irresponsável. O agir individual precisa fazer a reflexão sobre seu impacto na coletividade; qualquer liberdade termina onde começa a do outro.
Em tempos de polarização beligerante, a equivocada disputa ideológica escancara a fragilização do debate público e afasta as pessoas da convivência harmoniosa e da coabitação pacífica, segura e saudável. Mais do que nunca, é preciso o agir ético em tempos de cólera.
* Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)