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Matheus Leitão

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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog

A guerra tarifária invisível nos portos

Multinacionais são acusadas de cobrar taxas ilegais e manter guerra judicial que dura mais de 25 anos

Por Matheus Leitão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 15 ago 2025, 20h30

 

Quando um contêiner chega ao porto, cabe aos terminais definir quanto será cobrado pela movimentação da carga. A variação desses preços afeta diretamente toda a cadeia econômica. O que quase ninguém percebe, porque acontece longe dos olhos do público, é que, por trás da importação dessas mercadorias, a criação de custos adicionais no setor tem alimentado uma guerra silenciosa, e bilionária, travada há mais de duas décadas nos bastidores dos portos brasileiros.

No centro dessa disputa está um serviço essencial à operação portuária: a capatazia ou THC (sigla para terminal handling charge, ou, em tradução livre, taxa de manuseio no terminal). Uma atividade essencial dos portos, a capatazia é definida por lei como o conjunto de operações desde a descarga do navio até a entrega da mercadoria. Por si só, a capatazia é um serviço já remunerado pelas companhias de navegação, os chamados armadores, que pagam aos terminais portuários como parte do chamado “box rate”.

Mas desde o fim dos anos 1990, operadores portuários, muitos ligados a grupos multinacionais, têm se empenhado em fracionar a capatazia e, a partir disso, criar uma série de taxas adicionais. Entre elas, a mais conhecida e polêmica é a THC2, um preço que ganhou esse apelido por cobrar novamente por um serviço já pago, coberto pela já mencionada THC.

A estratégia não parou por aí. Ao longo do tempo, surgiram ainda a Guarda Provisória (apelidada de THC3), e vieram em sequência a Entrega Postergada (THC4), a Plugagem de Contêineres Refrigerados (THC5) e até a cobrança por Despacho sobre Águas, algo já previsto por acordos internacionais.

A justificativa dos terminais? Existência de serviços distintos na operação. A acusação dos concorrentes e de órgãos públicos? Indícios de práticas anticoncorrenciais, abusivas e ilegais.

Para desvendar esse cenário, a coluna ouviu representantes do setor, analisou documentos oficiais e traçou a linha do tempo de uma das maiores e mais complexas disputas do setor portuário nacional nas últimas décadas.

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A engenharia das tarifas: como funciona o fracionamento

A disputa começou quando os chamados “portos secos” – terminais alfandegados fora da área portuária-, foram autorizados a receber contêineres diretamente, com o propósito de desafogar os portos e reduzir os custos. Só que a medida, para muitos operadores, significou perda de receita. A reação, para continuar lucrando, foi criar preços específicos para “segregar”, “entregar”, “guardar”, “conectar na tomada” os contêineres aos portos secos, apesar de todas essas atividades já estarem previstas na contratação dos serviços da capatazia original pagos pelas companhias de navegação.

Assim nasceu a THC2, uma tarifa que, segundo especialistas e decisões judiciais consultadas, servia para encarecer o serviço dos concorrentes retroportuários. Em vez de competir por eficiência, os grandes operadores passaram a cobrar pela liberação do contêiner, sem regulação direta. Ao argumentar que estariam “obrigados” a movimentar e segregar as cargas destinadas ao recinto alfandegado (por escolha do importador), esses operadores tentavam garantir o direito de cobrar por esse “serviço adicional”, separadas da capatazia, mesmo sem previsão contratual específica.

Nos últimos anos, a estratégia foi replicada com novas roupagens. Entre os nomes das novas as tarifas, foram utilizados “remoção da pilha”, “entrega sob trânsito aduaneiro”, “recebimento de caminhão”, “levante”, “desengate”. Um verdadeiro glossário de nomenclaturas, com o objetivo de cobrar preços extras dos terminais que não operam diretamente nas áreas molhadas do porto.

Mais de 25 anos de disputa

O caso virou uma saga regulatória e judicial. Desde 2005, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) proibiu a THC2 em mais de 10 decisões, apontando “alto risco à concorrência” e risco de “exclusão dos portos secos do mercado”.

O Tribunal de Contas da União (TCU) também agiu. Em 2022, ordenou que a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) revogasse a norma que autorizava a cobrança. A ANTAQ, por sua vez, foi acusada de tentar validar a tarifa com resoluções que criavam conceitos artificiais como “pilha intermediária”.

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Em 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu um ponto final à questão, ao declarar definitivamente ilegal a cobrança da THC2. Mas o fim da cobrança não significou o fim da manobra.

A reinvenção da taxa: nasce a THC3

Mal a THC2 havia sido sepultada, operadores portuários buscaram novas estratégias para manter a cobrança. A Brasil Terminal Portuário (BTP), uma das maiores operadoras do Porto de Santos, passou a cobrar uma nova tarifa batizada de Guarda Provisória, que logo recebeu o apelido de THC3. Com valor até três vezes superior ao da THC2, a cobrança surgiu discretamente, incorporada à tabela pública de preços da BTP no recesso de fim de ano, em janeiro de 2023.

De acordo com o advogado Bruno Burini, especialista em Direito Marítimo e sócio do BRZ Advogados, tratava-se de uma tentativa de “ressuscitar uma tarifa já declarada ilegal”, com base nos mesmos argumentos jurídicos utilizados anteriormente, como o depósito necessário previsto no artigo 647 do Código Civil. “O fundamento jurídico é o mesmo da THC2. O operador tenta atribuir ao importador ou ao recinto alfandegado a responsabilidade por custos de guarda que são, na verdade, parte da movimentação da carga e, portanto, já remunerados na capatazia”, afirma.

Segundo Burini, a manobra vai além de uma simples reinterpretação legal. “É uma tentativa sofisticada de burlar decisões reiteradas do Cade, do TCU, da Justiça Federal e até do Superior Tribunal de Justiça. A Guarda Provisória nada mais é do que uma THC2 disfarçada, com outro nome e valor inflado. É o mesmo serviço, cobrado duas vezes, de forma coercitiva.”

A reação à nova tarifa foi imediata. Recintos alfandegados e importadores recorreram à Justiça e à própria ANTAQ, que inicialmente suspendeu a cobrança por meio de medida cautelar. No ano passado, após nova análise, a agência reguladora reconheceu formalmente que a THC3 “é uma variação do mesmo tema da THC2” e, portanto, igualmente indevida.

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THC4, THC5 e o Despacho sobre Águas: a indústria da taxa continua

A criatividade dos operadores, porém, não parece ter fim. Entrega postergada ou THC4 foi criada para cobrar por dia de atraso na retirada de contêineres. Como explica Burini, o problema é que nem sempre esse atraso seria culpa do importador ou do porto seco. “Muitas vezes, o próprio operador portuário impede a retirada dentro do prazo legal de 48 horas. E mesmo assim, cobra por isso. E quando é o próprio operador que atrasa, não paga nada. É uma situação não isonômica”.

E veio a THC5. Desta vez, o valor cobrado seria referente à plugagem e monitoramento de contêineres refrigerados, serviço imprescindível para a conservação de cargas perecíveis. “A manutenção térmica da carga é uma obrigação do armador, que já remunera o operador por meio da capatazia justamente pela movimentação e conservação do contêiner até a sua entrega — por óbvio, garantindo-se a manutenção da temperatura de contêineres refrigerados. Cobrar isso separadamente de terceiros, como os recintos alfandegados, é uma distorção jurídica e operacional”, aponta.

Há ainda o caso do Despacho Sobre Águas (DAS), um avanço introduzido pelo Acordo de Facilitação de Comércio da OMC, internalizado pelo Brasil, que permite o desembaraço aduaneiro da carga ainda a bordo do navio. Só que, em vez de representar economia, alguns terminais passaram a cobrar por esse serviço.

“É um contrassenso. O DAS foi criado para desburocratizar e reduzir custos. Mas virou fonte de receita adicional para operadores, que se apropriam de uma política pública e a transformam em instrumento de lucro próprio”, critica Burini. “O que era para beneficiar o comércio exterior brasileiro, acaba virando um novo item na fatura do importador.”

Para Bruno Burini, o impacto dessas tarifas vai muito além do aspecto financeiro. “Elas criam um ambiente de insegurança jurídica, judicialização excessiva e desestímulo à concorrência. Operadores retroportuários são sufocados, e o mercado se concentra cada vez mais nas mãos de poucos grupos, muitos deles, multinacionais com forte influência sobre a regulação.”

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A estimativa é que essa cobrança da THC2 adicione mais de R$ 1 bilhão por ano aos custos da cadeia logística, segundo levantamento do Ministério da Fazenda. Considerando-se que a THC3 incidia sobre a mesma operação mas tinha valor 3 vezes superior, adicione-se R$ 3 bilhões ao custo brasil. Ainda não há estimativa sobre a THC4 e a THC5, mas seus valores são significativos. Um peso que se reflete no preço dos produtos, na competitividade das empresas e no acesso da população a bens importados.
“O Brasil está diante de uma escolha. Ou enfrentamos de forma firme e definitiva esse modelo predatório, ou continuaremos presos a um ciclo de abusos que mina nossa competitividade e compromete o futuro da nossa logística internacional”, conclui Burini.

Em defesa da cobrança

De acordo com os defensores da cobrança, a justificativa dos terminais para tarifas como a THC2 é que a operação envolve atividades e custos extras. Este é o argumento central da nota enviada pela Associação Brasileira de Terminais de Contêineres de Uso Público (Abratec), que representa os maiores operadores do país.
Para sustentar o argumento, os operadores citam o Bill of Lading (BL), documento que formaliza o contrato de transporte marítimo. Segundo a entidade, em contratos de grandes armadores como MSC, Hamburg Süd e Hapag-Lloyd, as cláusulas indicariam que a responsabilidade do transportador termina assim que o contêiner deixa o navio, e que qualquer movimentação terrestre subsequente ficaria a cargo do terminal portuário.

A Abratec argumenta que, sem essa tarifa, os terminais arcam com custos que beneficiam seus concorrentes, como os portos secos. Segundo a entidade, a situação gera distorções no mercado e coloca pressão sobre a saúde financeira dos terminais. A associação também afirma que decisões contrárias à THC2 desestimulam novos investimentos, especialmente em um momento em que os navios estão cada vez maiores e as operações mais complexas.
A associação lembra que, nos anos 1980, um terminal portuário fazia cerca de 8 movimentos por hora, atendendo navios com capacidade para até 1.000 contêineres (TEUs). Hoje, essa produtividade chega a 120 movimentos por hora, com embarcações que transportam até 12.000 contêineres de uma só vez. Para os defensores da tarifa, esse salto no tamanho dos navios e na velocidade das operações torna necessário criar cobranças específicas, como o SSE.

Para reforçar seu posicionamento, Abratec citou a Nota Técnica nº 17/2022 do Departamento de Estudos Econômicos do CADE, como evidência de que a cobrança poderia ser legítima. O documento confirma uma posição minoritária dentro da equipe técnica e consultiva do Conselho, que apresentou interpretação distinta de que a tarifa evitaria que terminais subsidiassem serviços de concorrentes. Mas a leitura dissidente do grupo é totalmente distinta da jurisprudência dominante do CADE, que segue considerando a prática abusiva e ilegal.

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