A ameaça ao Teatro de Contêiner na Cracolândia e a ‘destruição em SP’
Em artigo enviado à coluna, a psicanalista Ludmila Frateschi afirma que não se pode chamar de política pública o desmonte de espaço de acolhimento e cultura

Na última quarta-feira, dia 28 de maio, o Teatro de Contêiner, espaço que existe há nove anos na região da Luz, em São Paulo, recebeu uma notificação extrajudicial para que deixasse o espaço em 15 dias. A notificação veio na sequência de um movimento que se intensificou em 2023 em que o Governo do Estado de São Paulo, a propósito de sua mudança de sede para o bairro de Campos Elíseos, retomou o projeto de reurbanização denominado Nova Luz e passou a “limpar” a região para viabilizar sua regularização.
A cidade de São Paulo possui inúmeros imóveis ociosos – e o Teatro de Contêiner não é um deles. Pelo contrário, possui programação intensa e tem atividades previstas e programadas já agora até dezembro. Exibe uma diversidade de espetáculos, de diferentes artistas e grupos, quase sempre gratuita ou a preços populares – e a casa costuma lotar. Ele também é gerido pela Cia. Mungunzá, que o utiliza como sede para uma pesquisa estética profunda e consistente. Só isso seria argumento suficiente para a manutenção de qualquer espaço. Mas o Contêiner não é só um teatro. Ele também é realizador e articulador de diversos projetos sociais. Durante a pandemia, permaneceu aberto como ponto de referência para a população em situação de rua da região e distribuiu 500 refeições por dia. Abriga o Tem Sentimento, projeto de geração de renda para mulheres em situação de vulnerabilidade. Realiza diversas ações voltadas às famílias habitantes de seu entorno, oferta ponto de encontro e palco para todo mundo que trabalha por ali. Foi agraciado com diversos prêmios nacionais e internacionais pela gestão e produção cultural e pela sua arquitetura inovadora. Está inserido no plano municipal de salvaguarda do teatro de grupo.
Por que desapropriar um espaço como esse? Creio que a razão tenha a ver com uma qualidade do Teatro que não costuma ser muito explorada: ele funciona como uma praça pública, no melhor sentido da palavra, que promove convivência. A aposta, feita junto com inúmeros parceiros, é num espaço de excelência em que a população mais vulnerável cabe e não precisa ser expulsa. Mais que isso, em que é considerada e do qual pode também se utilizar como lugar de expressão. As pessoas que o frequentam sonham, assim, outra cidade e já a puseram em prática, numa luta micropolítica cotidiana que já dura muitos anos.
É o oposto do que as atuais gestões municipal e estadual propõem como lógica urbana. Na região da Luz, desde 2023 houve uma ação orquestrada de expulsão da população mais vulnerável. A primeira ação foi fixar a aglomeração de pessoas (“fluxo”) em situação de rua da região em uma única quadra, apertada e cercada dia e noite pela Guarda Civil Metropolitana (GCM). Depois, reeditou-se a prática já bastante utilizada ali de submeter as pessoas aglomeradas a um deslocamento forçado, durante as horas de limpeza urbana: levadas para outra quadra, as pessoas eram obrigadas a passar três horas sentadas, sem se mover, sob sol ou chuva, até que a limpeza acabasse, controlados muitas vezes com truculência. Ampliaram-se as detenções por pequenos delitos e há relatos de que lhes era oferecida internação em comunidades terapêuticas como alternativa de salvação, não à droga, mas a não passar mais por aquilo tudo, numa lógica de coação manicomial.
Os estudos antropológicos realizados na região mostram que a população que vive ali em situação de rua foi parar no bairro de Campos Elíseos a partir de uma condição de miséria material e emocional. Lá, depositaram toda a esperança nos recursos disponíveis: aglomerar-se, criar alguma comunidade, conseguir acesso às condições mínimas de sobrevivência e construir uma sensação de pertencimento. Algo que ligue à vida, que dê vínculo, mesmo que muitas vezes esse algo seja o crack. Assim, para eles, o espalhamento muitas vezes significa a morte progressiva porque todas as alternativas lhe foram cortadas, e sem espetáculo.
Os projetos que atuavam diretamente dentro da aglomeração tiveram sua ação dificultada constantemente e seus beneficiários e trabalhadores ameaçados. Depois, vieram as operações de fiscalização e fechamento dos imóveis da região, sem nenhum plano que ajudasse os pequenos comerciantes e prestadores de serviço a se organizarem para continuarem onde estavam e nenhum plano adequado de realocação de moradores em situação irregular, muito menos de mantê-los na região. Iniciou-se a desapropriação da Favela do Moinho de forma bastante controversa, como já noticiado.
Foi nesse contexto que o Teatro foi notificado, com a justificativa de que o terreno será usado para construir habitações populares, o que causou estranhamento, já que a população local e de baixa renda não vem sendo contemplada nas ações propostas. O desprezo por valores coletivistas e a vitimização de determinados grupos da sociedade, como se fossem compostos de não humanos ou menos humanos, vem aqui acompanhados da destruição da arte e da cultura espontâneas como formas de expressão. Se deixarmos, não vai sobrar nada na Luz. Se deixarmos, em breve, não vai sobrar nada de Brasil.
* Ludmila Frateschi, psicanalista, pesquisadora de cultura e desenvolvimento humano, atua na Luz desde 2022, acompanhando os projetos Teto, Trampo e Tratamento (até 2024), Entre o sucesso e a lama e a peça Cena Ouro – epide(r)mia