Por que a terra indígena alvo da PF é uma das mais desmatadas no país
Aldeia liderada pelo cacique Damião, suspeito de lucrar com arrendamentos ilegais, viveu longo processo no Justiça até ser retomada

Décadas de lavoura, repasse a novos compradores, loteamentos e invasões ilegais tornaram a terra indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso, uma das mais devastadas em todo o Brasil. O local foi alvo de uma operação da Polícia Federal na semana passada, a Res Capta, para combater arrendamentos ilegais para fazendeiros. Hoje há cerca de 70 mil cabeças de gado na terra, e a suspeita de que o próprio cacique da aldeia, Damião Paridzané, tenha sido conivente e lucrado com a atividade ilegal — ele teria recebido 889.000 reais por mês para permitir a exploração ilegal da terra.
Marãiwatsédé já foi considerada a terra indígena mais desmatada da Amazônia Legal. Mais de 70% da cobertura de floresta já foi derrubada, e hoje a intensa atividade pecuária tem perpetuado a degradação e dificultado a recuperação ambiental.
A tragédia teve início com um lento cerco das terras ao redor da aldeia por posseiros. O sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da USP, já registrou em artigos que nos anos 50, fazendeiros levaram dezenas de índios à morte deixando roupas contaminadas com varíola no meio da mata. A área onde viviam os xavantes foi comprada do Estado do Mato Grosso por um empresário paulistano, que fundaria ali uma fazenda agropecuária, no que se tornaria parte do maior latifúndio brasileiro à época com cerca de 800 mil hectares. A expansão da criação de gado e da lavoura levou a diversos conflitos entre brancos e indígenas no local.
Então veio a ditadura militar, e os xavantes foram forçados a deixar o território. O próprio cacique Damião embarcou em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) em agosto de 1966 aos 14 anos, e foi levado com sua tribo para a Missão Salesiana de São Marcos, a mais de 500 quilômetros de sua terra. A terra foi repassada ao grupo petrolífero italiano Agip Petroli nos anos 80.

Foi nessa década que os índios se organizaram para retornar ao local, a partir da reabertura democrática no Brasil. Um longo processo de reconhecimento do direito dos indígenas sobre o local, porém, deu margem a invasões e repasses de partes da terra, incentivados por fazendeiros e políticos da região. Quando a terra indígena foi homologada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998, já havia uma pequena cidade com casas, sítios e até posto de gasolina dentro da terra indígena – o que iniciou uma nova batalha judicial, sob liderança do Cacique Damião.
A comunidade teve de ser retirada do local após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012 – uma operação que durou mais de um ano. Poucos anos depois, apareceram os sinais de que a pecuária ali se intensificava. Todo o histórico de ocupação da terra pode ter dado as condições para os arrendamentos ilegais de seguiram até hoje.
Para o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Mato Grosso, Gilberto Santos, cooptar lideranças indígenas e abrir as terras para a entrada de invasores tem constante no governo Bolsonaro. Ele diz que a entidade ainda aguarda mais informações sobre o caso de Damião para se posicionar, mas lembra que há situações em que a comunidade aceita empreendimentos dentro das terras por falta de assistência. “Há uma desestruturação do atendimento daquilo que é direito das comunidades, então vai se criando um ambiente que força as comunidades a buscarem outras alternativas”, diz Santos.