Lula não colocou um centavo nos abrigos, diz prefeito de Porto Alegre
Sebastião Melo, candidato à reeleição, sobe o tom contra o presidente, que deve apoiar sua adversária na eleição; afirmação é ‘mentira’, diz governo federal
Após as enchentes em Porto Alegre, a capital gaúcha tenta voltar à normalidade com a conclusão de algumas obras emergenciais para conter as águas do Guaíba e a limpeza de casas, comércios e equipamentos públicos inundados pela maior cheia da história. Cerca de 15 000 pessoas tiveram de pedir abrigo, inclusive o prefeito Sebastião Melo (MDB). A casa dele foi afetada, pois fica em um dos bairros mais prejudicados, o Guarujá, na zona sul. Morando hoje em um hotel no centro, separado da mulher e do filho, Melo considera a questão habitacional a demanda mais urgente a ser atendida pelo governo federal para que a vida seja retomada na capital.
A menos de quatro meses das eleições municipais, quando tentará a reeleição, Melo começa a subir o tom das cobranças ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que apoiará sua adversária nas urnas, a deputada federal Maria do Rosário (PT). Em entrevista a VEJA, o prefeito reivindica união dos governos federal, estadual e municipal para enfrentar a crise, mas opta por expor mais a demora do petista, por exemplo, em comprar imóveis para quem perdeu tudo ou anunciar a recomposição das receitas do estado e dos municípios. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
O governo federal, representado pelo ministro Paulo Pimenta, tem se posicionado contra as chamadas cidades provisórias, em debate no estado. Há uma alternativa a isso? A coisa mais fácil do mundo é ser contra sem apresentar opções. Eu defendo moradias acolhedoras, não provisórias. Tivemos cerca de 15 000 pessoas em 160 abrigos, comandados por voluntários da cidade que merecem de nós um monumento. Hoje são cerca de 3 000, sem contar as pessoas em casas de parentes. O governo federal diz que vai resolver o problema. Porto Alegre hoje dispõe de 1 000 imóveis entre novos e usados que chegam na faixa dos 170 000 a 200 000 reais. Para ser contra a cidade acolhedora, acho que o presidente Lula já deveria ter comprado esse lote. Mas não. Não compra imóvel, não apresenta alternativa e ainda não coloca um centavo nos abrigos. Não pode ser assim (Nota da Redação: nos últimos dias o ministro Paulo Pimenta anunciou a intenção da União de comprar 2.000 imóveis na região metropolitana. Sobre a falta de dinheiro para abrigos, leia nota do governo federal abaixo).
Qual a alternativa da prefeitura então? Eu pedi à Câmara que votasse um programa chamado estadia solidária, que já sancionei. A ideia é dar um voucher para a pessoa morar com um vizinho ou alugar um local até que o governo federal compre as casas prometidas.
Qual seria o valor desse voucher? Eu defendo que seja um salário mínimo dividido entre os três governos. Eu topo colocar um terço do salário mínimo, já dei minha palavra. O governo estadual botou 400 reais, mas com um corte que atinge poucas pessoas, e o governo federal, nada. Olha, essa transição é tão importante ou mais importante que a moradia no final. A gente precisa tratar disso ou o governo quer que essas pessoas vão morar na praça? Não vamos permitir e por isso insistimos que o governo federal venha participar do processo de transição, que pode levar dois anos. Eu acredito na palavra do presidente Lula, que prometeu casa a quem perdeu, mas precisamos dessa governança agora.
O que o senhor defende para a recuperação econômica da cidade? Financiamento com juros subsidiados e para todo mundo. Hoje, o Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) tem muita burocracia, o que dificulta o acesso. Além disso, é preciso que o governo federal recomponha as finanças municipais e a estadual. As nossas receitas foram com as enchentes. Calculamos que a perda alcance 800 milhões até o final do ano em IPTU, ISS e ICM. Se esse recurso não vier, não teremos como pagar os salários, aposentadoria e os gastos nas diversas outras áreas, como saúde.
Quais são as ações primordiais hoje para recuperar a cidade? Em primeiro lugar, precisamos ter união e cooperação. Se não existir isso, todos os desdobramentos ficam complicados. Dito isso, nessa questão da proteção de cheias, tivemos diques que extravasaram ou não funcionaram, portões que tiveram problemas, casas de bombas que colapsaram em função do volume de água. Então, há obras imediatas. Tudo o que a enchente estragou deve ser recuperado para ontem.
Isso quer dizer aumentar a altura dos diques e do Muro da Mauá, por exemplo? Ampliar a altura? O Muro da Mauá resistiu muito bem, mas precisamos de novos portões ou outros tipos de fechamento que ainda estão em estudo. Já os diques precisam todos ser levantados, já que foram feitos tendo como cota a enchente de 1941. A engenharia precisa redesenhar esse sistema para que haja proteção efetiva contra cheias. Agora, esse trabalho não depende só de Porto Alegre. Temos de fazer a nossa parte, mas as obras pesadas precisam ser assumidas pelo governo federal. O orçamento do meu município e de outros não comportam essas obras. Temos de ter liderança do governo federal, com participações estadual e municipal. Se um empurrar para o outro não vamos a lugar nenhum.
E isso já está acontecendo, um empurrando para o outro? Olha, eu tenho a postura de olhar para frente, mas a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, que é pior do Brasil, tem de servir de exemplo para outros entes da federação. Não basta anunciar que vai fazer, que é o mais fácil, mas fazer. E não estou falando desse governo, mas de todos. As coisas precisam sair do papel. Porto Alegre tem boa capacidade de investimento, possibilidade de empréstimos, mas o governo federal precisa vir junto.
Isso não aconteceu ainda? Não. Entreguei um documento para o presidente Lula com um valor preliminar das nossas principais demandas e também com o formato proposto de governança, que precisa ser tripartite, com as pessoas designadas dos governos federal, estadual e municipal, cada um com a sua competência. Sem isso não vai dar certo.
O senhor já tem esse valor preliminar? Só a macrodrenagem de Porto Alegre começa com cerca de 5 bilhões de reais, fora o que precisa ser refeito. E temos mais uns 7 a 8 bilhões de reais para suprir todos os estragos das cheias. Vai chegar a 15 bilhões de reais, o que representa 1 orçamento e meio da cidade, que é de 11,5 bilhões de reais. Temos conseguido subir os investimentos ano a ano, hoje está em 500 milhões de reais, mas a capacidade dos governos locais e regionais é muito pequena. Veja que só o funcionalismo público, contando a previdência, consome 5 bilhões de reais por ano. Então, com investimentos próprios não conseguiremos tocar essas obras. Temos de ter um fundo perdido do governo federal.
Isso será possível em ano eleitoral? Eu tenho procurado não tratar de eleição neste momento. Tomei essa decisão desde a primeira gota de chuva e, na medida em que a calamidade foi crescendo, a decisão de não politizar essa dor da nossa cidade foi mantida.
O processo de reconstrução de Porto Alegre vai exigir deslocamentos de bairros, como se vê em outras cidades, especialmente na orla do Guaíba? Nós temos 72 km de orla, da zona norte até a divisa com Viamão. Parte dessa orla está urbanizada, com ocupações diversas, da classe média alta à baixa. Desde 2011 temos visto um reencontro do rio com a cidade, que devemos preservar e, dentro do projeto de cheias, trabalhar como enfrentar isso. Agora não tenho elementos para definir a situação desses espaços, até porque parte dessa orla não tem qualquer proteção hoje.
O senhor tem sido criticado pela demora no bombeamento da água. Como responder a isso? Houve falhas? Quando as casas de bombas foram concebidas, na década de 1960, a finalidade delas sempre foi tirar a água dos locais onde a cota é mais baixa e jogar de volta para o Guaíba. Como houve essa chuva tão forte, que fez o rio chegar a 5 metros e 37 centímetros de altura, as casas pararam de funcionar, quase todas. Elas colapsaram. Agora, o debate está contaminado. Qualquer coisa que eu disser vão dizer que é porque sou o prefeito. Não dá para reduzir o problema do alagamento de Porto Alegre pelas casas de bomba.
Essa não foi a causa, mas por que tanta demora em bombear a água de volta? Olha, eu recebo essas críticas com muita naturalidade por quem está passando pelo drama que é ter a casa alagada. Essa pessoa vai dizer que está tudo errado. Temos 17 das 23 casas de bombas funcionando e estamos recuperando as que não estão, mas o trabalho é demorado. Tinha casa de bomba que nem dava para chegar. Eu compreendo a crítica, acho que todos devem fazer autocrítica, mas o sistema é de 1960 e o teste de fogo foi só agora. Mas, me digam, quando é que um presidente da República discutiu a questão climática no Brasil ou o Senado, a Câmara dos Deputados, as câmaras de vereadores, governadores e prefeitos discutiram isso? Essa autocrítica deve ser feita pela política porque esse novo normal requer adaptação das cidades. Temos de olhar pra frente.
Em 2020, durante a campanha, sua adversária, Manuela d’Ávila, abordou esse tema. Eu também toquei nesse tema. E de lá pra cá executei a proposta eleita pela população. Temos investido, por exemplo, na recuperação do Arroio Ipiranga (córrego que corta boa parte da cidade), na elaboração do plano de mitigação do efeito gás estufa e também na certificação e incentivo de edificações sustentáveis com água de reuso e energia solar. Temos atitudes importantes, não estamos ausentes nesse processo, mas a questão macro exige uma participação nacional. E o artigo 22 da Constituição é de clareza meridiana: diz que sistema de contenção de enchentes é atribuição do governo federal.
Governo federal contesta
Após a publicação da entrevista, o governo federal enviou nota à Redação na qual contesta a afirmação de Sebastião Melo de que a União não enviou dinheiro para os abrigos. Leia a nota:
É mentira que o Governo Federal não dedicou recursos para os abrigos em Porto Alegre. A verdade é que o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) destinou R$ 3,11 milhões em recursos para a prefeitura da capital gaúcha atender às demandas básicas da população por alimentação, abrigo e serviços de acompanhamento social.
Na capital gaúcha, cerca de 25 mil moradores já foram atendidos com os repasses. Até, sexta-feira, 20, o MDS disponibilizou mais de R$ 28,8 milhões para 97 municípios gaúchos que solicitaram o recurso para estruturar e manter alojamentos provisórios. Até a referida data, foram 154.573 mil pessoas acolhidas nesses locais, desde o início das chuvas intensas no estado.
O objetivo do MDS é fortalecer a capacidade de gestão dos municípios para que eles consigam atender às demandas básicas da população por alimentação, abrigo e serviços de acompanhamento social. Materiais de limpeza e higiene, cobertores, colchões, dentre outros itens, são adquiridos com os recursos disponibilizados via fundo municipal e que são liberados em cerca de 72 horas após o requerimento feito junto ao MDS.
As ações em parceria com o estado e os municípios já reduziram de 80% para 20%, aproximadamente, o número de pessoas alojadas em relação ao momento mais crítico do desastre no Rio Grande do Sul. O MDS repassa um valor destinado ao município, que leva em conta a quantidade de pessoas desabrigadas.
Outros R$ 141 milhões em recursos remanescentes para ações de assistência social no estado foram liberados pelo MDS. A medida flexibilizou o uso de saldos existentes em contas correntes dos Blocos de Proteção Social Básica e Especial, Piso Variável de Alta Complexidade (PVAC) e recursos remanescentes do enfrentamento da pandemia de Covid-19.
Além disso, a decisão abrange saldos de programações do Sistema de Gestão de Transferência Voluntária (SIGTV) e de emendas parlamentares destinadas a custeio e manutenção de unidades de serviços socioassistenciais. Dessa forma, esses recursos podem ser utilizados para ações emergenciais, reforçando a resposta do governo à crise humanitária no estado.