EUA x Moraes: crise pode gerar de ‘morte financeira’ a tensão diplomática
Especialistas comentam ameaça do secretário de Estado americano, Marco Rubio, de punir magistrado brasileiro por conta de suas decisões como ministro do STF

O secretário de Estado americano, Marco Rubio, afirmou na quarta-feira, 21, que os Estados Unidos avaliam fortemente aplicar duras sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Lei Magnitsky Act.
A declaração do trumpista do alto escalão do governo americano foi dada durante uma sessão da Câmara dos Representantes, após um deputado republicano dizer que o magistrado brasileiro tem tido ações de censura e que ferem os direitos humanos, incluindo de brasileiros que vivem nos Estados Unidos.
Caso seja sancionado pela Magnitsky Act, Moraes poderia ficar sem conta bancária e sem permissão para utilizar cartões de crédito, mesmo no Brasil, por risco de sanções secundárias aos bancos e às bandeiras dos cartões. VEJA ouviu dois especialistas em relações internacionais para entender as reais possibilidades de isso ocorrer e se implicaria no surgimento de uma crise diplomática entre os dois países. Confira abaixo.
João Estevam
professor de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi
Pena de morte financeira — “Aplicar essa lei não é uma medida simples, uma mera carta de intenções, um memorando de intenções, é uma lei até chamada de pena de morte financeira. Caso isso ocorresse, abriria uma crise diplomática, talvez, até agora, a crise diplomática mais intensa, mais importante, que o governo brasileiro teria com o governo Trump. É diferente, por exemplo, da crise que se teve na área comercial, que era a prerrogativa do governo Trump. Os países têm a prerrogativa de modificar suas tarifas de importação. Agora, outra coisa é violar a soberania nacional de outros países”.
Reação do STF e do Congresso — [“A Magnitsky Act] É uma lei que não afeta instituições, e sim indivíduos, então seria especificamente para o Alexandre de Moraes. Se isso acontecesse, acredito que haveria uma reação do STF, dos demais ministros e outras instituições também, inclusive de uma parcela do próprio Congresso Nacional. Há deputados, senadores que estão pressionando as autoridades americanas [para que Moraes seja sancionado pelos EUA], como é o caso de Eduardo Bolsonaro, mas é muito provável que haja algum tipo de reação das instituições brasileiras, tanto do STF quanto do Legislativo e do Executivo”.
Postura do governo Lula — “É muito difícil supor que o Executivo vá olhar toda essa situação sem realizar nenhuma ação concreta. O governo brasileiro sempre preza por ações de negociação, foi assim com relação ao aumento das tarifas pelo governo Trump, foi assim em outras situações, mas essa é diferente, não se trata apenas de uma mera elevação de tarifas, de algo que está dentro da prerrogativa do governo americano, mas é uma violação direta à soberania nacional, à soberania do Brasil. [Caso ocorra] É muito provável que o governo brasileiro vá tomar alguma medida mais incisiva, tanto em termos de negociações, o que é algo constante na política externa brasileira tradicional, independentemente de governos, quanto também em termos de ações concretas”.
Pressão trumpista — “Ainda é muito cedo para dizer se vai para frente ou não. O meu palpite, com bastante cautela, é que ainda é uma tentativa de pressionar, não o governo brasileiro, mas o STF, particularmente o Alexandre de Moraes, do que efetivamente ser um tudo ou nada. Acho que é uma escalada o que tem acontecido. Já houve críticas do governo americano antes em relação a decisões ligadas ao X aqui no Brasil, críticas também em relação ao Moraes, ao STF. Então, tudo isso constitui um ambiente de escalada. A gente pode ver essa fala do Marco Rubio como mais um nível. É evidente que, se essa escalada continuar a ocorrer, é possível, sim, esperar medidas mais agressivas do governo Trump. As sanções são uma forma agressiva de ofensa na política externa, de meios de disputa na política externa. Sanções tomadas pela lei Magnitsky ocorrem para casos de violação grave de direitos humanos e é prevista também para casos de tortura, corrupção, ou seja, são casos graves na lei internacional. Então, é um tom muito acima”.
Paulo Niccoli Ramirez
professor de Relações Internacionais da ESPM e da FESPSP
Defesa das big techs — “Até agora é uma bravata, porque seria uma sanção direcionada a um indivíduo e não a uma instituição. E, geralmente, os americanos trabalham em esfera institucional. Há, no primeiro momento, uma tentativa de Trump de defender as empresas de big tech, por onde o Alexandre de Moraes tem feito algumas restrições, a respeito de notícias falsas, discursos de ódio e antidemocráticos que surgem nas redes sociais. Mas a única possibilidade dessa tensão se estender é o STF como um todo passar a restringir a forma como as redes sociais operam no Brasil”.
Consequências a Moraes — “Sendo assim, por enquanto, a única coisa que poderia ser feita, e eu duvido que venha a ocorrer, são sanções pessoais, como viagens, compras de produtos, e não passaria disso. O Alexandre de Moraes não poderia pisar no solo americano. Mas os Estados Unidos só atuam dessa forma quando se trata de algum traficante de drogas, alguém que atua à margem das instituições. É isso que soa muito estranho nessa história toda, porque o Moraes não age sozinho, ele age em nome de um poder burocrático. [Ainda que a leitura dos trumpistas seja a de que Moraes atua à margem das instituições] Provavelmente, a Justiça americana não entenderia dessa forma, porque o Moraes não age fora da instituição. Mesmo que o Trump tente levar isso adiante, isso pararia nas Cortes americanas, já que é uma decisão também monocrática contra o poder instituído, o STF”.
Conflito diplomático — “Nesse ponto, os Estados Unidos estão sendo cuidadosos, já que atuar contra o STF seria iniciar um conflito diplomático, e o Brasil atua a partir de uma correspondência por reciprocidade. O que significa dizer que, caso os americanos fizessem algum dano contra o STF e contra todos os juízes, o Brasil teria que responder na mesma altura. Mesmo que a sanção fosse feita pessoalmente ao Moraes, isso ainda poderia abrir uma crise diplomática, porque o Brasil não entenderia como um caso individual, mas como uma instituição. Isso poderia gerar um efeito dominó dos dois lados. Mais restrições dos Estados Unidos em relação ao Brasil e do Brasil em relação aos Estados Unidos, inclusive proibindo outras autoridades americanas de circularem pelo país. Caso isso vá adiante, a tendência é que o Brasil busque cada vez mais apoio dos países não alinhados aos Estados Unidos, no caso a China e a Rússia. Diplomaticamente, isso pode ser um tiro no pé. Os Estados Unidos podem entregar as articulações brasileiras de mão beijada, de bandeja, para os Brics, fortalecendo o vínculo do Brasil com nações não alinhadas”.