Caso de polícia: multinacional diz ter sido vítima de extorsão em SP
Empresa americana de óleos essenciais opera com modelo venda de marketing direto no Brasil e acusa ex-colaboradora de vingança e perseguição
O modelo de venda de marketing direto é uma estratégia antiga de negócios, muito usada no Brasil dos anos 90 com cosméticos e potes para comida. O modelo ainda funciona em alguns segmentos – como é o caso do doTerra, uma empresa americana de óleos essenciais com cerca de 30 000 consultores no Brasil. No entanto, a relação da companhia com uma de suas colaboradoras acabou se tornando um caso de polícia, com acusações mútuas que envolvem extorsão, fraude e pirâmide financeira.
Os promotores da doTerra são chamados de consultores. Eles precisam fazer um investimento em produtos da empresa e atuam de forma independente, encaminhando os clientes para o ecommerce da empresa, recebendo em troca uma comissão. Os consultores precisam seguir uma cartilha de orientações da companhia, o que inclui não prometer a cura de doenças por meio do uso dos óleos essenciais. Isso porque eles são considerados itens de bem-estar que auxiliam em diversos quesitos, como o sono, respiração, disposição e humor, mas não têm propriedades farmacológicas. O produto não é barato: no site da empresa, um vidro de 5ml pode chegar perto dos 300 reais.
Em agosto de 2023, a doTerra decidiu descredenciar uma de suas consultoras, Tatiane Aline Marian, moradora de Florianópolis (SC), sob a alegação de que ela estaria “prometendo curas” através dos óleos da empresa. Discordando do gesto e se sentindo injustiçada, a ex-consultora passou a expor nas redes sociais o que ela chama de um esquema de “pirâmide” pelo qual a empresa funcionaria.
Cruzada digital
Tatiane iniciou a partir de então uma “cruzada digital” contra a doTerra, expondo detalhes da relação da empresa com os consultores. Ela acusa a companhia de exigir investimentos financeiros que não correspondem aos retornos prometidos e de operar por um esquema de pirâmide financeira, por causa de uma suposta meta de trazer novos colaboradores. A ex-consultora teve alguns de seus perfis no Instagram e no Tiktok derrubados por ordem judicial.
No Instagram, há três perfis geridos por Tatiane – um é “reserva” do outro, caso seja retirado do ar. Ela mostra prints de conversas com outras ex-consultoras que afirmam que ficaram no vermelho vendendo os óleos essenciais da companhia e debocha de outras colaboradoras que ainda estão vinculadas à doTerra. O perfil “@tatiapoio3”, que está sendo usado por Tatiane, tem pouco mais de 3 000 seguidores. No inquérito policial, consta que as publicações feitas por ela já alcançaram 6 milhões de visualizações. Há cinco liminares judiciais obrigando-a a cessar os ataques nas redes, mas a campanha dela continua.
O modelo de venda de marketing direto é uma estratégia legal no Brasil e é muito diferente do esquema de pirâmide – esse sim, criminoso. Para que a pirâmide financeira seja configurada, têm que existir alguns requisitos, como a impossibilidade das vítimas saírem do esquema quando quiserem e a inviabilidade da estrutura financeira. A pirâmide é feita para não funcionar, por isso é considerada uma fraude. Tatiane afirma, em várias publicações, que as consultoras não conseguiam ser reembolsadas pelos óleos essenciais que não conseguiam vender.
Caso de polícia
A doTerra decidiu ir primeiro à porta da delegacia e acusou a ex-consultora de cometer o crime de perseguição, por vingança pelo seu descredenciamento. A pena máxima desse crime é de dois anos de prisão. A empresa diz que Tatiane “ataca trabalhadores honestos, com a finalidade de desestabilizar emocionalmente, incitar ódio, causar prejuízo financeiro” e que busca “ter proveito econômico”, supostamente cobrando para as pessoas participarem das suas lives e fazendo propaganda de óleos essenciais da concorrência.
O inquérito do caso está em São Paulo, no 91º Distrito Policial da cidade, aos cuidados do delegado Marcelo Augusto Gondim Monteiro. Na quarta, 31, Tatiane apresentou o depoimento por escrito de uma testemunha que corroboraria as suas acusações contra a doTerra. A ex-consultora ainda não foi interrogada, etapa que precisa ser cumprida para o inquérito ser finalizado. Depois disso, o relatório da Polícia Civil vai ser encaminhado ao Ministério Público, que decide se Tatiane deve ou não ser colocada no banco dos réus.
Extorsão
Prints de mensagens que estão no inquérito mostram que o representante da doTerra do Brasil, Glenn Paulo Bangerter, enviou uma mensagem para Tatiane em outubro de 2023 tentando fazer um acordo para colocar fim ao caso. “Eu gostaria de falar com você e oferecer o que chamamos em inglês um ‘Olive Branch’. Em português talvez a palavra seria uma bandeira branca. Ou um gesto de reconciliação”, diz o texto da mensagem.
Depois dessa mensagem, Bangerter e o advogado de Tatiane, Antonio Alberto Vale Cerqueira, se falaram algumas vezes na tentativa de chegar a um acordo. Nas últimas conversas que tiveram, o representante da ex-consultora mencionou uma indenização de 250 mil dólares (equivalente a 1,2 milhão de reais), que a empresa não aceitou. No processo, há o vídeo e a transcrição completa da conversa (abaixo).
Por esse motivo, a doTerra foi além e denunciou Tatiane pelo crime de extorsão, que passou a ser investigado pela Polícia Civil de São Paulo no mesmo inquérito que apura o delito de perseguição. Por meio de um comunicado à imprensa, a doTerra disse que “uma chantagem revelou o interesse financeiro da organização criminosa” e que Tatiane estaria movendo essa “cruzada digital” por dinheiro. “Fomos obrigados a buscar todos os meios jurídicos para cessar essas condutas criminosas e proteger vítimas inocentes atacadas diariamente”, diz a advogada Vanessa Souza, especialista em leis de tecnologia e representante da empresa no inquérito.
Do outro lado, a defesa da ex-consultora afirma que não desistirá de provar na Justiça que a sua cliente tem razão. “As ações que ela irá tomar já estavam sendo providenciadas antes da doTerra propor acordo e continuam em andamento, o que inclui representações criminais por potenciais e em tese crimes financeiros, tributários e contra o consumidor, a serem encaminhadas ao Ministério Público Federal”, disse Cerqueira a VEJA.