A volta por cima do único condenado por crimes na ditadura
O delegado Carlos Alberto Augusto tinha entrado para a história em 2021 como o primeiro sentenciado por violações cometidos no regime militar
O Brasil, ao contrário de outros países sul-americanos que passaram por ditaduras no passado recente, tem muita dificuldade para punir os responsáveis por crimes cometidos no período autoritário. O esforço que mais avançou foi o da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que em 2014 apresentou um relatório com os nomes de 377 acusados de violações de direitos humanos durante o regime militar (1964-1985). Passados oito anos, ninguém está sequer no banco de réus. Apenas 98 deles estão vivos, todos com mais de 70 anos de idade.
Pior: o único que havia sido condenado conseguiu dar a volta por cima. O delegado aposentado Carlos Alberto Augusto foi sentenciado em junho de 2021 a dois anos e 11 meses de prisão por participação no sequestro qualificado do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte (desaparecido desde 1973) e se tornou o primeiro ex-agente condenado pelo Judiciário brasileiro por violações na ditadura.
Carlos Alberto Augusto ocupou na ditadura o cargo de investigador no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), um dos braços da repressão política do regime. Trabalhou sob as ordens de célebres torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o delegado Sérgio Paranhos Fleury, e ganhou o apelido de “Carlinhos Metralha” pelo hábito de andar pelos corredores portando uma metralhadora.
No entanto, o precedente histórico aberto com sua sentença, proferida pelo juiz Silvio César Arouck Gemaque na 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo, durou pouco. Em fevereiro último, menos de um ano depois, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3)aceitou um recurso da defesa e extinguiu a punibilidade de Augusto por prescrição dos crimes.
O TRF3 considerou que o caso do delegado de 78 anos se enquadra na Lei da Anistia, de 1979, que concedeu indulto tanto a agentes da ditadura quanto a opositores do regime que tivessem cometido crimes. A lei é considerada válida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) até hoje, apesar de contrariar o entendimento do direito internacional das quais o Brasil é signatário. Por esse motivo, o país já foi condenado por duas vezes na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual é signatário, por não punir criminosos do período autoritário.
Quando condenou Carlinhos Metralha, Gemaque classificou o ex-delegado como o autor de um crime contra a humanidade, categoria de violações imprescritíveis e não contempladas pela Lei da Anistia. A posição, endossada pelo Ministério Público Federal, que é o autor da denúncia, não foi aceita no TRF-3. “Isso foi uma tese maluca do MPF de que era um crime contra os direitos humanos. Não tem que discutir isso 50 anos depois, nós não vivemos isso. O direito serve para deixar o passado para trás”, argumentou Evandro Capano, um dos advogados que trabalham na defesa de Augusto.
O MPF, claro, discorda. “Não temos problema em comprovar que foram crimes contra a humanidade. O que acontece é que os juízes adotam, de forma acrítica, uma decisão do STF que precisa ser atualizada”, rebateu o procurador Marlon Weichert. “É uma questão política, não jurídica. Falta vontade política para o Supremo contornar o lobby de pessoas relacionadas à ditadura, atualizar sua jurisprudência e estar de acordo com o direito internacional”, completa.
Dilma e Bolsonaro
Carlinhos Metralha foi figura ativa durante as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016, quando também foi fotografado com cartazes ofendendo a Comissão da Verdade. Ele apoiou a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2018.
O MPF deve recorrer à decisão do TRF3 e levar o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) mas, dado o histórico recente — mais de 50 ações nesse sentido foram rejeitadas ou arquivadas –, os próprios procuradores reconhecem que a chance de reverter a absolvição é mínima.