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Tem alguém na família com uma doença rara?

Dia 28/2 é celebrado o Dia Internacional das Doenças Raras. Entenda o que são doenças raras e deixe seu depoimento em homenagem a esse dia

Por Salmo Raskin
Atualizado em 4 jun 2024, 19h22 - Publicado em 28 fev 2017, 12h00

Todo ano, dia 28/2, é celebrado o Dia Internacional das Doenças Raras. Mas afinal, o que são doenças raras?

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), doenças raras são definidas como aquelas que têm uma prevalência menor do que 65 casos por 100.000 habitantes. Na Europa, uma doença é considerada rara se afeta menos do que uma em cada 2.000 pessoas, e nos EUA, se afeta menos do que 200.000 pessoas no país em um determinado momento.

E no Brasil? Infelizmente não há dados epidemiológicos sobre a prevalência dessas doenças no Brasil, mas, como em países que dispõem desses dados o grupo representa cerca de 7% da população, podemos estimar que cerca de 15 milhões de brasileiros tenham uma doença rara. Para se ter uma ideia do que este número representa em um país continental como o Brasil, imagine se todas as pessoas que residem no Estado do Rio de Janeiro tivessem uma doença rara.

Só um subgrupo destas doenças raras, as anomalias congênitas, afeta cerca de 4% de todos os nascidos vivos, e, portanto, é, há 30 anos, a segunda maior causa de mortalidade infantil no Brasil. Mesmo assim, até hoje, o Brasil não tem implantada uma Política de atendimento aos pacientes com doenças raras.

O número total de diferentes doenças raras excede 8.000 e cerca de 80% delas são de causa genética. Mesmo entre os 20% que não são de causa totalmente genética, em muitas delas, o componente genético é importante.

Quais são as características de uma Doença Rara?

  • Podem atingir qualquer família e 75% delas se manifestam ainda na infância;
  • São caracterizadas por uma ampla gama de sinais e sintomas que variam muito, não só de doença para doença, mas até entre pessoas que têm a mesma doença rara e entre afetados na mesma família. Isso leva ao atraso no diagnóstico, ou ao diagnóstico errado e até à falta de diagnóstico, e consequente atraso no início dos tratamentos ou tratamento errado ou falta de tratamento;
  • Frequentemente são incuráveis e a grande maioria sequer tem tratamento específico, sendo que os cuidados incidem, sobretudo, na melhoria da qualidade e expectativa de vida;
  • São geralmente crônicas, progressivas e potencialmente fatais. Metade dos pacientes com doenças raras morrem antes de completarem cinco anos de idade. Não só a sobrevida em geral é menor, mas também a qualidade de vida é afetada. Esse quadro pessimista pouco a pouco vai sendo modificado pelos enormes avanços da Medicina, que tornam cada vez mais compatível uma vida longa e muito próxima do normal. Mas, para isto, o diagnóstico tem que ser precoce, correto e devem existir tratamentos acessíveis à população.

Independente de qual das 8.000 doenças raras a pessoa tenha, os obstáculos são muito parecidos

  • Falta de conhecimento científico, médico, das autoridades públicas e da população em geral sobre as doenças raras, levando à dificuldades de diagnóstico clínico e laboratorial. A grande maioria dos casos nem chega a ser diagnosticado ou tem diagnóstico tardio;
  • Ausência completa de dados epidemiológicos e consequentemente de políticas públicas. A falta de uma política de saúde pública particularizada às doenças raras é uma vergonha dos sucessivos governos brasileiros;
  • Desinteresse da indústria farmacêutica em desenvolver medicamentos que teriam potencial de tratar estas doenças raras e também de promover pesquisa científica no Brasil;
  • No Brasil, quem tem uma doença rara enfrenta também o desafio do número reduzido de profissionais especializados em doenças raras (a especialidade de médico geneticista é a que tem menor número de profissionais no Brasil) e a escassez de centros de referência para diagnóstico e tratamento;
  • Problemas de acesso aos planos de saúde, que muitas vezes consideram que os pacientes com doenças raras têm doenças pré-existentes e impõem obstáculos nas contratualizações e coberturas;
  • Insensibilidade dos órgãos governamentais às peculiaridades das pesquisas científicas necessárias, assim como às nuanças que deveriam fazer com que a aprovação e o acesso aos medicamentos órfãos tivessem critérios diferentes daqueles que são rotineiramente utilizados para avaliar a incorporação, no sistema de saúde público, de medicamentos para doenças frequentes. Um exemplo: a Anvisa exige, através de seu “Programa de Fornecimento de Medicamento Pós-Estudo”, que o fornecimento de medicamentos após o término de um ensaio clínico (período de pesquisa) seja disponibilizado gratuitamente aos sujeitos da pesquisa. Até se compreende que esta exigência vem de encontro à preocupação de garantir a segurança e os direitos dos sujeitos de pesquisa. Porém, este é um bom exemplo de como as normas para doenças raras merecem considerações diferentes das normas para doenças frequentes (equidade). Esta regra da Anvisa inibe que as indústrias farmacêuticas façam estudos clínicos para medicamentos de doenças raras no Brasil, pois como a grande parte dos raros pacientes que tem aquela doença já farão parte da pesquisa, e terão acesso gratuito ao medicamento para sempre, a indústria praticamente não terá para quem vendê-los após o término da pesquisa, caso sejam comprovadamente seguros e eficazes. Por outro lado, o Brasil pouco investe na indústria farmacêutica local para desenvolvimento de medicamentos. Em resumo, não produz localmente e cria obstáculos para os que vêm do exterior. Quem quis proteger os doentes que participam de pesquisas, acaba por prejudicá-los.
  • Quando são diagnosticados, a necessidade de cuidados especiais, com múltiplos profissionais de saúde, diferentes do que ocorre com a maioria das doenças mais frequentes, piora o que já era desigual e amplia os entraves ao atendimento médico já rotineiros para quem tem uma doença frequente; pior ainda para quem tem uma doença rara;
  • Mesmo quando o diagnóstico correto é feito, pacientes podem viver por muitos anos em condições precárias e sem atenção de saúde especializada e multiprofissional. Podem ser, literalmente, excluídos do sistema de saúde, a não ser que tenham condições de viajar para as capitais de seus Estados – 99% dos municípios brasileiros não têm atendimento especializado para doenças raras;
  • Nas poucas doenças raras para as quais existem medicamentos específicos, em geral estes são muito caros e inacessíveis ao cidadão brasileiro. Some a isto a falta de benefícios sociais e a procura desenfreada das famílias por uma cura (muitas vezes de forma inadvertida), e uma das consequências será a pauperização ainda maior destas famílias, aumentando dramaticamente a iniquidade do acesso aos cuidados para pacientes com doenças raras;
  • Muitas doenças raras se repetem nas famílias porque são hereditárias. Todas as dificuldades aqui relatadas se multiplicam quando há mais de um caso na mesma família. A falta de investimento em serviços de aconselhamento genético faz com que tenhamos no Brasil inúmeros casos de vários irmãos com a mesma doença rara, sem que os pais sequer tenham tido a oportunidade de serem orientados sobre o caráter hereditário. Até porque, muitas vezes, não é feito o diagnóstico ou é feito tardiamente quando vários filhos já nasceram;
  • As famílias de pacientes com doenças raras têm consequências sociais peculiares. Viver com uma doença rara traz implicações em quase todas as áreas sociais, entre elas na escolaridade, na escolha de uma futura profissão, na escolha de se casar e ter ou não filhos, no tipo de lazer permitido, na sociabilidade e integração com pessoas saudáveis da mesma idade. Não é infrequente que leve ao isolamento, exclusão social, preconceito, discriminação, problemas com seguros (de vida, viagens, saúde, etc) e redução das oportunidades profissionais;
  • Além dos pontos descritos acima, não é incomum ouvir de pessoas com doenças raras que, de alguma maneira, conseguem conciliar tratamento e vida social/profissional a respeito da imensa dificuldade que encontram para explicar para os seus círculos de convívio o que se passa consigo, do que se trata sua doença, o porquê da necessidade de tantos tratamentos e/ou medicações, além da luta diária contra a estigmatização e o preconceito. Apesar do empenho que a maioria demonstra para levar a vida próximo do normal, há também relatos de dificuldades na inserção do tratamento na rotina, considerando a quantidade de tempo necessária para executar o tratamento completo;
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Os enormes obstáculos acima descritos trazem imensuráveis impactos psicológicos aos afetados e seus familiares. O fato de não existirem ainda curas eleva ainda mais o sofrimento, a dor e o sentimento de vulnerabilidade destes pacientes e suas famílias, além do “sentimento de culpa” descrito por muitos pais. Não é por acaso que muitas vezes o nascimento ou os obstáculos nos cuidados de um filho com uma Doença Rara leva a separação dos pais, o que torna a situação ainda mais dramática para os afetados.

A somatória destes fatos leva a um grande fardo financeiro às famílias de pacientes com doenças raras e também ao sistema de saúde do país, até porque, diante da omissão do Estado, o acesso ou não ao atendimento de Saúde de quem tem uma doença rara e nasceu no Brasil, é atualmente quase sempre regulamentado via judicialização.

Avanços da medicina para quem tem doenças raras

  •  Um dos maiores avanços nos últimos anos, para quem tem uma doença rara, foi o aumento exponencial na capacidade de diagnóstico. Curiosamente, isto aconteceu não só porque a população e os profissionais da área de saúde passaram a ter maior conhecimento sobre elas, mas principalmente porque os exames de genética se sofisticaram a ponto de diagnosticar doenças raras que jamais seriam diagnosticadas clinicamente. Um destes novos exames laboratoriais, o sequenciamento do exoma, tem revolucionado o diagnóstico de doenças raras. Nos próximos anos mais e diferentes doenças raras serão diagnosticadas, cada vez mais precocemente. O diagnóstico preciso e precoce, se acompanhado de tratamento adequado, terá efeito na sobrevida e qualidade de vida. Cada vez mais, e por mais tempo, pessoas com doenças raras necessitarão de atendimento e cuidados de saúde. Não adianta fechar os olhos, pelo contrário, há que se enfrentar a situação, mesmo que já tardiamente;
  • Outro avanço é o incentivo para que a indústria farmacêutica se interesse em desenvolver medicamentos específicos para doenças raras. Iniciado há mais de três décadas nos EUA ena Europa, começa agora a trazer frutos concretos. Só nos últimos meses, foram aprovados pelas agências reguladoras internacionais medicamentos novos para as doenças fibrose cística, atrofia muscular espinhal, distrofia muscular de duchenne, entre outras. Quem atende pacientes com doenças raras todos os dias sabe que este tipo de novidade aparecia uma vez a cada década, e não uma vez por mês, como agora;
  • O fato de que os obstáculos são muito parecidos e a falta de apoio dos sucessivos governos fez com que pacientes e seus familiares procurassem se unir a outros que vivem dramas semelhantes. O empoderamento dos pacientes e das famílias de pacientes com doenças raras aumentou muito nos últimos anos, inclusive no Brasil. Suas vozes já podem ser ouvidas com frequência e amplitude através de inúmeras ONGs;
  • A comunidade científica também tem trabalhado de forma mais harmônica, compreendendo que, justamente pela raridade destas doenças, as parcerias científicas entre muitos grupos, de diferentes países, não são apenas bem-vindas como no caso de doenças mais comuns, mas são essenciais.

Doenças raras e o Brasil: 2017 será um ano decisivo!

O termo “doença rara” pode dar a falsa impressão de que este é um daqueles problemas que nunca vão atingir você ou a seus familiares, mas só “aquelas pobre pessoas que tiveram o azar de algo terrível ter acontecido com elas”. Não se iluda, pois a baixa frequência destas doenças não significa que uma delas não vá bater a porta de sua casa. Basta saber que naquelas de herança genética recessiva, em geral os pais, tios e avós são pessoas absolutamente normais, que nem imaginam que carregam uma propensão a ter filhos com doenças raras até o dia em que nasce alguém com uma doença rara na família. E mesmo que não te atinja de forma direta, cabe a você, como cidadão, refletir, decidir e influenciar em que sociedade quer viver.

Aqui, o que está em jogo é o que a sociedade brasileira (que afinal é quem paga a conta) quer para TODOS que ficam doentes. Queremos uma sociedade utilitária, em que vidas tenham um custo determinado por fármaco-economistas e tecnocratas, dependendo da frequência das doenças na população ou uma sociedade que não abra mão dos princípios de universalidade, igualdade e equidade?

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Equidade é tratar diferentes de forma diferente, que é exatamente o que se necessita neste contexto das doenças raras e dos medicamentos órfãos. Equidade é um dos princípios doutrinários do SUS e tem relação direta com os conceitos de igualdade e de justiça. No âmbito do SUS se evidencia, por exemplo, o atendimento aos indivíduos de acordo com suas necessidades, oferecendo mais a quem mais precisa e menos a quem requer menos cuidados. Busca-se, com este princípio, reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde e nas necessidades das pessoas, considerando que o direito à saúde passa pelas diferenciações sociais e deve atender a diversidade.

Apesar de utópico, não podemos abrir mão de perseguir a ideia de viver em uma sociedade em que todos tenham direito a uma vida plena, independentemente da doença que os acometa. Não se trata de um direito de uma minoria (como alguns querem agora fazer crer), e sim da vontade de uma maioria que entende que ninguém está livre de vir a ter em sua família alguém afetado por uma doença rara. E que, ainda que a doença não acometa alguém da sua própria família, entende que não se pode negar o acesso a melhor qualidade de vida, mesmo que tenha de tirar dinheiro do próprio bolso para tratar o próximo. Já pagamos do próprio bolso por coisas muito menos relevantes e algumas até repugnantes.

É nitidamente imoral negar o acesso a um medicamento que faz a diferença entre a vida ou a morte ou mesmo àquele que apenas melhora a qualidade de vida, em especial quando não há no mercado nenhuma alternativa tão eficiente como aquele medicamento. Contanto, claro, que o medicamento em questão seja seguro e não experimental. Temos de lembrar que mesmo que o medicamento não cure ou não contenha a evolução da doença, ele pode manter o paciente em boas condições para ter acesso à geração seguinte de medicamentos que logo virão e certamente serão mais eficientes. Quando se trata de salvar vidas, há que ter flexibilidade nas regras. Equidade é a palavra-chave!

Proposta: criação pelo estado brasileiro de uma comissão para lidar com doenças raras

De que adiantam os avanços enormes que ocorreram nos últimos anos na capacidade de diagnóstico e tratamento de doenças raras se estes não forem acessíveis a quem é afetado por elas? O estado brasileiro deveria criar uma comissão exclusivamente para estudar a situação das doenças raras no Brasil. Caberia a esta comissão propor a criação de um órgão regulador permanente que subsidiasse o estado brasileiro com informações e propostas de melhorias no atendimento de pacientes com doenças raras.

Quando uso o termo “estado brasileiro”, é para que nada fique dependente de uma única pessoa no Ministério da Saúde de determinado governo, pois basta que esta pessoa seja substituída (o que, aliás, ocorre com impressionante frequência!), para que os projetos sejam engavetados ou sejam iniciados do “zero”. Se não houver um olhar direcionado especificamente a estes milhões de brasileiros, os graves problemas que afetam principalmente (mas não somente) a eles e seus familiares aumentarão em proporção exponencial nos próximos anos.

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O estado brasileiro teria que se livrar de ranços ideológicos e incluir nesta comissão representantes de TODAS as partes interessadas, inclusive da população (através de representantes das ONGs de apoio aos pacientes com doenças raras) e da indústria farmacêutica (que vem sendo sistematicamente tratada como vilão e, “portanto”, deixada de lado nas discussões).

Nos próximos dias o STF vai tomar uma das decisões que terão maior impacto na vida de brasileiros com doenças raras: vai decidir sobre o acesso destes pacientes a medicamentos caros. Lanço aqui a seguinte pergunta: Que culpa tem uma pessoa de ter uma doença rara cujo medicamento é muito caro? Deve ela ser punida ou ser considerada uma cidadã de segunda classe por ter uma doença rara?

Para que a população entenda melhor o que significa ter um familiar com uma doença rara, conclamo a todos que têm um caso na família ou mesmo um conhecido com doença rara, deixar aqui seu depoimento. E, no final do depoimento, peça ao STF que vote por equidade!! Tratar Raros de modo diferente daqueles que têm uma doença frequente, para que TODOS sejam bem tratados!!!

Se quiser obter mais informações sobre atividades do Dia Internacional das Doenças Raras acesse aqui.

Se quiser saber mais detalhes sobre Doenças Raras acesse aqui ou aqui.

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Se quiser saber mais detalhes sobre minha opinião sobre se o estado brasileiro deve ou não arcar com o tratamento de doenças raras, acesse matéria anterior no Blog Letra de Médico.

Salmo Raskin
(Gilberto Tadday/VEJA)

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