Jogo Patológico: quando o azar é só seu
Os jogadores patológicos apresentam uma doença comportamental, muito semelhante à dependência de álcool e de outras drogas

É curioso, mas o compositor brasileiro Alfredo Le Pera (1900-1935) foi um dos grandes responsáveis pela popularização do tango. Nascido no tradicional bairro paulistano do Bixiga, logo cedo se mudou com os pais imigrantes italianos para o Uruguai e depois para a Argentina, onde fez parceria com o mítico cantor Carlos Gardel (1890-1935).
Cuesta Abajo, El día que me quieras e Mi Buenos Aires querido são clássicos do compositor brasileiro que traduzem com esplendor o espírito portenho. Entretanto, devido a sua inquestionável qualidade de letra e música, Por Una Cabeza contribuiu para popularizar o tango na cultura mundial. Composta no mesmo ano (1935) em que Le Pera morreu em um acidente aéreo ao lado de Gardel, fala de um apostador compulsivo em corridas de cavalo:
“Por uma cabeza
De un noble potrillo
Que justo en la raya
Afloja al llegar
Y que al regresar
Parece decir:
No olvidéis, hermano
Vos sabés, no hay que jugar”
Assim como o personagem descrito no famoso tango, os jogadores patológicos (também descritos como jogadores problemáticos ou jogadores compulsivos), apresentam uma doença comportamental, muito semelhante à dependência de álcool e de outras drogas. Diferentemente das pessoas que conseguem ter o jogo como uma forma de lazer, os portadores deste transtorno não conseguem se controlar e continuam a jogar e apostar, apesar das diversas consequências negativas que esta atividade causa para si e para seus familiares.
O jogo patológico é um transtorno psiquiátrico
O jogo patológico é um transtorno que acomete cerca de 1% das pessoas e que pode levar a enormes custos sociais e individuais.
No recém-publicado Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria (APA), o jogo patológico foi reclassificado na mesma categoria que os “transtornos relacionados a substâncias e transtornos aditivos”, em vez de um “transtorno de controle dos impulsos” como no DSM-IV, pois sua sintomatologia é claramente mais semelhante à dependência química e de álcool.
Isso fica ainda mais evidente quando avaliamos mais detalhadamente os seus critérios diagnósticos. O jogador patológico precisa gastar quantidades de dinheiro cada vez maiores para alcançar a desejada excitação (tolerância). Fica inquieto ou irritável quando tenta diminuir ou parar de jogar (abstinência); com diversos insucessos nestas investidas. Daí ocorre uma constante preocupação com o ato de jogar, pensando nos eventuais sucessos no jogo (fixação), examinando como será a próxima jogada e como poderá recuperar o que já perdeu no jogo, além de buscar maneiras em obter recursos para jogar.
Sintomas
Uma das características mais dramáticas do jogador patológico está na mudança de seu comportamento em relação aos familiares e amigos. Mente para eles a respeito do seu envolvimento no jogo; muitas vezes pondo em risco ou até perdendo relações pessoais significativas. Também pode se prejudicar no emprego, estudos ou nas oportunidades da carreira por causa dos jogos de azar. Dessa forma, tende a depender dos outros para obter dinheiro para aliviar a desesperada situação financeira na qual se encontra. Por fim, vem o efeito “bola de neve”, ou seja, passa a maior parte do tempo se sentindo angustiado (culpado, deprimido, indefeso) o que o leva novamente a jogar, em uma tentativa frustrada de aliviar estes afetos negativos. Neste ponto, a “bola de neve” – com o perdão do trocadilho – vira uma “roleta russa”.
Fatores de risco
Dentre os fatores de risco para o jogo patológico estão características genéticas, clínicas e demográficas, como a presença de transtornos psiquiátricos (especialmente dependência a drogas e risco para suicídio), baixo nível socioeconômico, não estar casado e ser do sexo masculino. Neste sentido, o grupo da Faculdade de Medicina da USP em São Paulo, demonstrou importantes diferenças no perfil de jogadores patológicos no Brasil.
Verificaram que os homens iniciam no jogo do bicho ou na loteria, aí sentem coragem para jogar no bingo, e a partir daí no caça-níquel eletrônico, videopôquer, com uma evolução lenta até buscar tratamento. Por outro lado, as mulheres, em geral, começam a jogar mais tarde por volta dos 40 a 50 anos, viciando mais rapidamente e logo buscam ajuda – muitas vezes desmoralizadas pelas consequências financeiras e a vergonha.
Os jogos com mais estímulos visuais/sonoros e recompensas mais rápidas (com resultado imediato, como no caça-níquel ou roleta) demonstraram ser mais viciantes do que os com menos estímulos e cujo resultado do escrutínio é demorado (como nos jogos de loterias no Brasil).
Em termos mais amplos de neurobiologia, pode-se transpor esta analogia ao efeito e recompensa imediata de drogas como o crack ou a cocaína injetável, ambas com maior capacidade de provocar dependência. Assim, alguns interessantes experimentos demonstraram que o jogo patológico parece envolver as mesmas estruturas cerebrais ativadas por drogas de abuso, como a cocaína, embora progressos nesta área ainda sejam necessários.
Opções de tratamento
Aproximadamente dois terços dos jogadores patológicos não vão se recuperar espontaneamente, necessitando de ajuda profissional. Embora o tratamento para jogo patológico não seja amplamente disponível fora de centros universitários mais especializados, algumas opções terapêuticas têm sido utilizadas.
Como exemplo estão os grupos de autoajuda (12-passos, jogadores anônimos), intervenções motivacionais, terapia cognitivo-comportamental e outras formas de psicoterapia – modalidades baseadas naquelas desenvolvidas para a dependência de álcool e de outras drogas.
O tratamento das frequentes comorbidades como a depressão são fundamentais. Pois, se outro compositor argentino (Discépolo, 1901-1951) definiu o tango como “um pensamento triste que se baila”, podemos caracterizar o jogo patológico como “a tristeza que se joga”….porém sem nenhuma chance de ganhar!
_
Quem faz Letra de Médico
Adilson Costa, dermatologista
Adriana Vilarinho, dermatologista
Ana Claudia Arantes, geriatra
Antonio Carlos do Nascimento, endocrinologista
Antônio Frasson, mastologista
Artur Timerman, infectologista
Arthur Cukiert, neurologista
Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião
Bernardo Garicochea, oncologista
Claudia Cozer Kalil, endocrinologista
Claudio Lottenberg, oftalmologista
Daniel Magnoni, nutrólogo
David Uip, infectologista
Edson Borges, especialista em reprodução assistida
Fernando Maluf, oncologista
Freddy Eliaschewitz, endocrinologista
Jardis Volpi, dermatologista
José Alexandre Crippa, psiquiatra
Ludhmila Hajjar, intensivista
Luiz Rohde, psiquiatra
Luiz Kowalski, oncologista
Marcus Vinicius Bolivar Malachias, cardiologista
Marianne Pinotti, ginecologista
Mauro Fisberg, pediatra
Miguel Srougi, urologista
Paulo Hoff, oncologista
Paulo Zogaib, medico do esporte
Raul Cutait, cirurgião
Roberto Kalil – cardiologista
Ronaldo Laranjeira, psiquiatra
Salmo Raskin, geneticista
Sergio Podgaec, ginecologista
Sergio Simon, oncologista
Walmir Coutinho, endocrinologista