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Azul de metileno: a verdade sobre o corante que virou “elixir da mente”

Substância ganhou as redes sociais com a promessa de melhorar o foco e até proteger contra o Alzheimer. Médico desmistifica a história

Por Gustavo Lenci Marques*
25 jun 2025, 07h51

Entre cápsulas coloridas no Instagram e vídeos no TikTok que prometem foco, longevidade e juventude cerebral, um nome antigo reapareceu com roupagem moderna: azul de metileno. Vendido por influenciadores como a nova substância “biohacker”, capaz de turbinar o cérebro, melhorar a energia, fortalecer a imunidade e até prevenir Alzheimer, o corante azul voltou aos holofotes – mas desta vez, não pelos motivos certos.

O problema não está em sua existência, mas no abismo que separa os seus usos médicos reais da fantasia vendida como suplemento milagroso. É hora de contar essa história com os pés no chão da ciência.

O azul de metileno foi sintetizado pela primeira vez em 1876 pelo químico Heinrich Caro, como um corante para tecidos. Mas sua trajetória logo ganharia outro rumo. Por sua afinidade com estruturas celulares, passou a ser usado na microscopia e na bacteriologia, marcando tecidos e células com sua cor intensa.

E foi então que entrou em cena o cientista Paul Ehrlich – uma das figuras mais influentes da história da medicina – ao testar a substância como tratamento para a malária. Contra todas as expectativas, funcionou. O azul de metileno tornou-se o primeiro antimalárico sintético conhecido e abriu caminho para a era da quimioterapia. Um corante têxtil que salvava vidas. Ciência pura.

Ao longo do século XX e XXI, a substância continuou sendo estudada e aplicada com indicações específicas. Sua principal utilidade clínica atual é como antídoto em casos de metemoglobinemia, uma condição grave em que o sangue perde a capacidade de transportar oxigênio, mesmo quando os pulmões estão funcionando.

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Em situações como intoxicação por nitrito, anilina ou certos medicamentos, a hemoglobina sofre uma alteração e não consegue mais fazer seu trabalho. O azul de metileno, nesse contexto, atua como um revertente bioquímico e pode literalmente salvar uma vida. Ele também tem uso hospitalar em certos tipos de intoxicação, e tem sido investigado como adjuvante em quadros de sepse refratária ou malária resistente. Tudo isso, claro, em ambiente hospitalar, com dose controlada, supervisão médica e indicações precisas.

Mas nada disso é o que aparece nas redes sociais. Nos últimos anos, o azul de metileno foi promovido por influenciadores digitais e autoproclamados especialistas em “otimização humana” como suplemento cerebral milagroso.

A promessa? Melhorar o foco, aumentar o desempenho cognitivo, prevenir o envelhecimento do cérebro e potencializar o metabolismo. A realidade? Não há nenhuma evidência clínica robusta que sustente essas afirmações. Alguns estudos in vitro ou em modelos animais mostraram efeitos promissores no metabolismo mitocondrial e no controle de radicais livres, mas esses achados não se traduziram em resultados clínicos relevantes em seres humanos.

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Um exemplo emblemático é o caso do Alzheimer. Durante anos, acreditou-se que o azul de metileno ou seus derivados poderiam interferir na agregação de proteínas tau, relacionadas à doença. Mas o maior estudo clínico já realizado – publicado no Lancet em 2016, com 890 pacientes – demonstrou que o composto investigado (o LMTM, derivado do azul de metileno) não teve eficácia superior ao placebo. A empolgação da comunidade científica se dissipou com os dados.

O que não se dissipou, porém, foi o entusiasmo dos vendedores de promessas. Cápsulas azuis ganharam as redes, geralmente sem prescrição, orientação ou controle. E é aí que mora o perigo. O azul de metileno não é inofensivo.

Em pessoas que fazem uso de antidepressivos, como os inibidores seletivos da recaptação de serotonina, pode desencadear a síndrome serotoninérgica, uma condição grave e potencialmente fatal, com tremores, confusão, hipertermia e até convulsões.

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Em indivíduos com deficiência de G6PD, uma condição genética, o uso da substância pode provocar anemia hemolítica grave, que é uma condição em que ocorre a destruição das células do sangue. Mesmo em casos leves, efeitos como náuseas, diarreia, dor de cabeça, alteração na coloração da urina ou da pele e sensibilidade à luz são comuns.

Além dos riscos individuais, há o problema coletivo: vender ciência distorcida mina a confiança nas instituições, banaliza os cuidados médicos e transforma saúde em produto de marketing. Na Europa, associações farmacêuticas já alertaram contra o uso indiscriminado do azul de metileno.

Ele não é aprovado como suplemento, não é medicamento para uso domiciliar e não deve ser vendido para qualquer finalidade sem supervisão adequada. No Brasil, infelizmente, farmácias de manipulação têm oferecido o produto de forma facilitada, com base em prescrições frouxas ou feitas por “médicos de Instagram” – um fenômeno preocupante e, no mínimo, antiético.

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Não se trata aqui de rejeitar a ciência de substâncias antigas, muito pelo contrário. O azul de metileno é, sim, uma molécula fascinante, e pode ter aplicações futuras relevantes. Mas transformar um fármaco com usos clínicos específicos em “pílula da mente” para consumo recreativo é não só irresponsável como perigoso. Em tempos de hype, precisamos mais do que nunca de bom senso.

Antes de seguir o conselho de um influenciador digital, vale a pena perguntar: isso tem respaldo científico real ou é só mais uma embalagem bonita para uma ideia vazia? O azul de metileno salvou vidas – e segue salvando, dentro dos hospitais. Mas, usado fora do contexto médico, ele pode ser mais ilusão azul do que solução brilhante.

* Gustavo Lenci Marques é médico cardiologista, pós-doutor em Ciências da Saúde, professor de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e especialista da plataforma de Carreira Médica PUCPR

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