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A inteligência é hereditária?

A inteligência é uma característica muito complexa dada pela somatória de componentes genéticos e não genéticos, alvo de diversos estudos genéticos

Por Salmo Raskin
Atualizado em 22 set 2017, 12h00 - Publicado em 22 set 2017, 12h00

Inteligência ou Inteligências?

Em termos gerais, “inteligência” poderia ser definida como a habilidade de raciocinar, planejar, resolver problemas, ter pensamentos abstratos, compreender idéias complexas, aprender rapidamente e aprender das experiências. Apesar de que, por décadas, os testes tradicionais de inteligência em geral só levavam em consideração as inteligências verbal e a lógica/matemática, este conceito está mudando.

Em 1983, o psicólogo americano Howard Gardner publicou o livro Frames of Mind: The Theory of Multiple Intelligences ou, em português, “Estruturas da Mente – A Teoria das Múltiplas Inteligências”, onde ele descreve sete dimensões da inteligência (inteligência visual/espacial, inteligência musical, inteligência verbal, inteligência lógica/matemática, inteligência interpessoal, inteligência intrapessoal e inteligência corporal/cinestética).

Após a publicação de Estruturas da Mente Gardner propôs duas novas dimensões de inteligência: a inteligência naturalista e a inteligência existencialista. Mais recentemente, em 1997, a física e filosofa americana Dana Zohar publicou seu livro ReWiring the Corporate Brain ou, em português, Religação do Cérebro Corporativo, sugerindo a existência de mais um tipo de inteligência que aumenta os horizontes das pessoas, torna-as mais criativas e se manifesta em sua necessidade de encontrar um significado para a vida, a inteligência espiritual.

Hoje, entende-se que cada pessoa tem uma desses 10 tipos de inteligências mais desenvolvida, e que se sobrepõe sobre as outras.

Francis Galton, o pioneiro nos estudos do componente genético da inteligência

Um dos primeiros a se aprofundar na tentativa de compreender qual o papel da genética na inteligência foi Francis Galton (1822-1911), antropólogo, meteorologista, matemático e estatístico inglês. Dalton era primo mais novo de Charles Darwin (1809-1882), e quando Darwin publicou seu famoso livro On the Origin of Species, em português, A Origem das Espécies, em 1859, Galton passou a ter ideias muito deterministas em relação ao componente genético da inteligência, que foram colocadas em seu livro publicado em 1869, Hereditary Genius, em português, O Gênio Hereditário.

Se, por seu lado, o primo Charles Darwin trouxe as ideias da seleção natural, Galton propôs a seleção artificial para o aprimoramento da população humana segundo os critérios considerados melhores à época. Galton achava que as pessoas já nasciam com uma vasta diferença na capacidade intelectual, tão grande que nenhuma disparidade social, econômica ou educacional conseguiria interferir de modo importante nesta predeterminação genética.

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Atribui-se a ele pensamentos como: “um homem notável teria filhos notáveis”; “a raça humana poderia ser melhorada caso fossem evitados “cruzamentos indesejáveis”; “devemos incentivar o nascimento de indivíduos mais notáveis ou mais aptos na sociedade e desencorajar o nascimento dos inaptos”.

Galton, reunindo duas expressões gregas, eu geneía (bom nascimento), criou em 1883 o conceito de eugenia. Nesta linha de raciocínio, Galton propôs o desenvolvimento de testes de inteligência para selecionar homens e mulheres brilhantes, destinados à reprodução seletiva. O impacto de seus estudos formou a base para os famosos testes de QI utilizados até hoje.

Durante grande parte dos séculos XIX e XX, acreditou-se que a inteligência podia ser facilmente medida, determinada e comparada através de testes de QI. No entanto, com o passar do tempo, o teste de QI foi caindo em descrédito, pois pouco a pouco foi se notando que nem sempre as pessoas mais inteligentes e bem sucedidas obtinham os melhores escores de QI.

Como investigar se a inteligência é genética?

Se uma característica é claramente transmitida de geração em geração sem maior influência do meio ambiente, fica evidente seu componente genético. Mas e quando há dúvidas se há componente genético, se há componente ambiental, e qual parcela cada um destes ocupa?

Quando ainda não era possível analisar o genoma humano em detalhes, o modelo mais utilizado para tentar responder esta pergunta era a análise de gêmeos idênticos e compará-los com gêmeos não-idênticos, irmãos não gêmeos e pessoas adotadas. Estes estudos partem de um princípio simples, o fato de que gêmeos idênticos (monozigóticos) têm exatamente a mesma genética, e gêmeos diferentes (dizigóticos, fraternos) não.

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Para características totalmente determinadas pela genética, a concordância desta característica é cerca de 100% em gêmeos idênticos, ou seja, se um tem determinada característica, o outro gêmeo também tem ou terá. Para características determinadas só pelo meio ambiente, a concordância entre gêmeos idênticos será muito menor, pois não é a genética que manda. Para características determinadas tanto pela genética quanto pelo meio ambiente, a concordância em gêmeos idênticos será maior (em geral mais que o dobro) da encontrada em gêmeos diferentes.

Nos últimos 90 anos, incontáveis estudos usando este modelo tentaram demonstrar qual o papel da genética e do meio ambiente na inteligência. Em 2015, um amplo estudo publicado na revista científica Nature Genetics revisou a reanalisou a informação contida em 2.748 publicações científicas dos últimos 50 anos, levando em conta 7.804 características de 14.558.903 pares de gêmeos.

Concluiu que o componente genético na variação da inteligência é de 54%. E mais, que o componente genético desta variabilidade aumenta quanto mais velhos ficamos; 20% na infância, 40% na adolescência, chegando a 60% nos adultos. Estes estudos tanto demonstraram que a genética é um fator importante na inteligência, quanto que ela não é o único fator determinante.

Mas foi só quando ocorreram os enormes avanços trazidos pela tecnologia de análise do DNA, ocorrido nos últimos 20 anos, que os pesquisadores passaram a tentar determinar não apenas “quanto” mas “quais” seriam estas variantes genéticas responsáveis pelas diferenças entre os graus de inteligência das pessoas.

O DNA e a inteligência

Com o avanço dos conhecimentos sobre nosso DNA, advindos da publicação do sequenciamento do Genoma Humano em 2001, inúmeros pesquisadores se dedicaram a testar variações ao nível do DNA, comparando grupos de pessoas com inteligência acima da média, com indivíduos com QI médio, a procura do “gene da inteligência”.

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Um amplo estudo publicado em Julho de 2017 na revista científica Nature Genetics levou em conta praticamente todos estes trabalhos realizados nos últimos 20 anos. Compararam os achados previamente relatados de variantes genéticas em 78.308 indivíduos e detectaram variáveis genéticas em 52 genes relacionando-as a capacidade cognitiva. Porém o impacto destes 52 genes explica apenas 4.8% da variabilidade da inteligencia. Além disso, nenhuma das 52 variantes genéticas encontradas, sozinha ou em conjunto, tem poder de predição importante.

Inteligência é uma característica extremamente complexa!

É claro que não há um “gene da inteligência”, pois inteligência é uma característica muito complexa. Quando dizemos “complexa”, entendemos que o componente genético não é determinado por um único gene, mas sim pela interação entre as proteínas produzidas por muitos genes, e é multifatorial. Ou seja, inteligência é dada pela somatória de componentes genéticos e não genéticos.

E quando se investiga características complexas, a regra tem sido justamente não conseguir explicar através de análises do DNA, os números robustos trazidos pelos estudos de gêmeos. Por exemplo, estudos de gêmeos sugerem que a genética responde por cerca de 80% da variabilidade da altura entre as pessoas, mas as análises de DNA só encontraram até hoje variantes que explicam menos de 10% desta variabilidade.

Aonde está o resto da variabilidade genética da inteligência?

A ciência não sabe responder a esta pergunta, mas existem hipóteses:

  1. As variantes responsáveis pelo componente genético da inteligencia seriam tão raras que os estudos atuais não estão conseguindo captar. Precisaríamos comparar milhões de pessoas (e não milhares como vem sendo feito atualmente), para detectar estas variante raríssimas;
  2. As variantes genéticas não estariam agindo de forma isolada, mas sim interagindo entre elas e com inúmeras outras variantes no genoma, assim como interagindo com os meio-ambientes celulares, corporais, e sociais, de modo absolutamente complexo;
  3. Os estudos de gêmeos estavam superestimados;
  4. Estamos procurando o componente genético no lugar errado! A variação genética não estaria na sequência do nosso DNA, mas em mecanismos que alteram sua principal função que é produzir proteínas. São os chamados efeitos epigenéticos: Esta é uma hipótese cada vez mais aceita, pois respeita e coloca em sintonia tanto a influência genética quanto a do meio ambiente, agindo ao mesmo tempo. Seria o fim do embate secular entre Nature (genética) X Nurture (meio ambiente). Um estaria influenciando o outro ao mesmo tempo!
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Deficiência intelectual severa é hereditária?

Em um trabalho publicado na revista científica PNAS em 2016, um grupo de pesquisadores de Israel e da Suécia estudaram o QI em mais de 1 milhão de irmãos e 9.000. Observaram que irmãos de indivíduos com deficiência intelectual severa têm um QI médio de 100, já irmãos de indivíduos com deficiência intelectual leve têm um QI médio de 85. Ou seja, QI intermediário entre indivíduos com deficiência intelectual severa e controles.

Concluíram que, com a exceção de raras síndromes genéticas hereditárias, a maioria dos casos de deficiência intelectual severa não é hereditária, o que vai de encontro aos achados de que alterações genéticas encontradas em pessoas com deficiência intelectual severa são mutações raras causadas por “acidentes” genéticos, não-hereditários.

Extrema habilidade intelectual é hereditária?

Em tese, um grupo grande de indivíduos com alta inteligência seria enriquecido de “variantes genéticas que conferem inteligência”, e, portanto, seria um grupo ideal para estudos de genética da inteligência. O mais importante estudo genético de gêmeos que focou na genética da extrema habilidade intelectual, foi publicado na revista científica Intelligence em 2015.

Liderados pelo mais importante geneticista comportamental da atualidade, Robert Plomin, do Kings College of London, analisaram 3 milhões de recrutas dos exércitos sueco e israelense, e selecionaram os 5% com maior inteligência (QI >125). Destes, avaliaram 9.000 pares de gêmeos (3.039 idênticos, 3.196 não-idênticos e 2.780 gêmeos que não sabiam se eram idênticos ou não), assim como 354.80 irmãos não gêmeos, todos com 18 anos.

Concluíram que, justamente ao contrário da deficiência intelectual severa, a inteligência extremamente alta é tão hereditária quanto é no resto dos indivíduos com inteligência normal. Este resultado entusiasmou os pesquisadores, que acreditaram então, que fazendo estudos de DNA neste subgrupo de indivíduos com altas habilidades intelectuais, teriam mais sucesso do que no grupo de inteligência média ou deficiência intelectual severa.

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Porém, um estudo de casos e controles com 1.409 indivíduos selecionados por terem QI >170 e 3.253 controles não selecionados, publicado há um ano na revista científica Molecular Psychiatry novamente não encontrou nenhuma variante genética que pudesse ser reproduzida em outra coorte de indivíduos com extrema inteligência. Os pesquisadores concluíram que raras variantes genéticas são mais prejudiciais do que benéficas à inteligência, e que as variantes associadas com extrema inteligência podem ser raríssimas.

Dilemas éticos no estudo da genética da inteligência

Apesar de que até a presente data as pesquisas só conseguirem desvendar um componente ínfimo da parcela que se credita à genética na inteligência, alguns pesquisadores de genética comportamental, em especial o grupo liderado pelo mais importante Geneticista comportamental da atualidade, Robert Plomin, do Kings College of London, já está elaborando análises genéticas, baseadas nos 52 genes já identificados, para predizer se pessoas ou grupos têm maior ou menor propensão à inteligência.

Só no segundo semestre de 2017, estes grupo de pesquisa já publicou cinco artigos científicos tentando demonstrar a utilização de testes genéticos para predizerem vários aspectos relacionados a inteligência (veja as referências* no fim deste artigo), questões relacionadas à genética estão envoltas em dilemas éticos, mas quando assunto é pesquisar a genética da inteligência humana, estes dilemas afloram a pele.

A inteligência está intimamente ligada com o senso de quem nós somos e quem podemos nos tornar, e inúmeras preocupações surgem, entre elas:

  • Potencial uso deste conhecimento para “produzir bebês melhores”;
  • Perigo de que se espalhem idéias de que pelas limitações determinadas por nossos genes, nós não somos responsáveis pelo que atingimos ou deixamos de atingir;
  • Graves erros do passado aonde pesquisas genéticas foram utilizadas para impulsionar agendas racistas e classistas, incluindo idéias de que intervenções em grupos desavantajados seriam limitadas pelas suas limitações genéticas, aumentando mais ainda a desigualdade social;
  • Preocupações com a privacidade dos sujeitos destas pesquisas;
  • Preocupações de que achados entre indivíduos serão erroneamente extrapolados para conclusões sobre diferentes populações;

Cautela com testes genéticos

Em uma era em que testes genéticos são oferecidos por algumas empresas diretamente aos consumidores sem a orientação de profissionais de saúde habilitados para orientá-los, e na qual se aperfeiçoam a cada dia técnicas de correção do DNA que poderão ser aplicadas a embriões humanos, a possível identificação de variantes genéticas relacionadas à inteligência faz com que o que era pura ficção científica há muito pouco tempo atrás, passe a ser realidade em curto espaço de tempo.

Um bom exemplo da diminuição entre o que era ficção e o que em breve será realidade, ocorre quando lembramos que o famoso filme GATTACA, lançado como ficção científica há exatos 20 anos atrás, e que faz uma narrativa sobre um “futuro possível” onde o destino de todo o ser humano depende de seu código genético.

As sociedades precisam se preparar para o dia em que, tecnicamente, poderemos predizer se um embrião, um feto ou um recém-nascido terá o potencial genético de ser mais inteligente que o outro. No que se refere ao conhecimento e ao uso da informação genética sobre a inteligência humana, a ficção científica está, a cada dia que passa, menos parecida com ficção, e mais com drama.

Referências*:

  • Multi-polygenic score approach to trait prediction. Krapohl E, Patel H, Newhouse S, Curtis CJ, von Stumm S, Dale PS, Zabaneh D, Breen G, O’Reilly PF, Plomin R. Mol Psychiatry. 2017 Aug 8.
  • Do MZ twins have discordant experiences of friendship? A qualitative hypothesis-generating MZ twin differences study. Asbury K, Moran N, Plomin R. PLoS One. 2017 Jul 20;12(7):e0180521. Genetic Influence on Intergenerational Educational Attainment. Ayorech Z, Krapohl E, Plomin R, von Stumm S. Psychol Sci. 2017 Jul 1
  • Genome-Wide Polygenic Scores Predict Reading Performance Throughout the School Years. Selzam S, Dale PS, Wagner RK, DeFries JC, Cederlöf M, O’Reilly PF, Krapohl E, Plomin R. Sci Stud Read. 2017 Jul 4;21(4):334-349.
  • The genetic architecture of oral language, reading fluency, and reading comprehension: A twin study from 7 to 16 years. Tosto MG, Hayiou-Thomas ME, Harlaar N, Prom-Wormley E, Dale PS, Plomin R. Dev Psychol. 2017 Jun;53(6):1115-1129.

 

Salmo Raskin

 

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