A conexão entre coração e cérebro: quando um vai mal, o outro também sofre
Especialista destrincha elo entre esses dois órgãos essenciais, que compartilham doenças e fatores de risco bastante prevalentes
Gostaria de começar com uma pequena aula de anatomia. O coração está ligado a dois órgãos principais: o cérebro e os pulmões. Temos dois grandes vasos sanguíneos que se originam dentro do músculo cardíaco e que fazem uma ligação direta com esses dois órgãos.
A maior artéria do nosso corpo, conhecida como aorta, nasce no lado esquerdo de coração e desmembra-se em diversos ramos para levar sangue rico em oxigênio a todas as partes do corpo. A conexão entre o coração e o cérebro é feita por dois ramos da aorta, as artérias carótidas. A conexão entre o coração e os pulmões, por sua vez, é feita pela artéria do tronco pulmonar, que se origina no lado direito do coração e leva sangue sem oxigênio para ser processado no interior dos pulmões.
A conexão entre coração e cérebro só é funcional quando o fluxo sanguíneo que chega à cabeça tem pressão adequada e quantidade de nutrientes suficiente para garantir a viabilidade da massa cinzenta. Portanto, as inúmeras funções desempenhadas pelo cérebro, como concentração, memória, equilíbrio e cognição, dependem diretamente de um bom trabalho do coração.
Não existe saúde cerebral sem saúde cardíaca. O inverso também é verdadeiro, pois nosso cérebro atua como uma torre de comando de todas as funções orgânicas, propiciando estabilidade para o trabalho do coração.
Ao analisarmos a estrutura do órgão que bombeia o sangue para o organismo, veremos que a maior parte dele consiste em um músculo extremamente especializado, o miocárdio. Ele pode ser equiparado a um potente motor de propulsão, pois, em condições normais, ejeta de 4 a 6 litros de sangue a cada batimento. O fluxo sanguíneo que chega ao cérebro depende da quantidade e qualidade dos batimentos cardíacos.
Uma pessoa que apresenta um infarto do coração extenso, comprometendo acima de 50% da massa miocárdica existente, tende a desenvolver redução dos batimentos e oscilações da pressão arterial. Como consequência, o fluxo sanguíneo que chega ao cérebro fica abaixo do esperado, favorecendo sintomas como confusão mental, tonturas, desmaios e convulsões.
As arritmias, a hipertensão mal controlada e a insuficiência cardíaca também são situações que podem reduzir o fluxo sanguíneo cerebral. As arritmias englobam batimentos cardíacos fora do compasso normal, sendo algumas de caráter mais brando e outras com potencial para gerar uma parada cardíaca. Tal desorganização faz com que o sangue chegue ao cérebro de forma irregular, sem a constância adequada.
A fibrilação atrial é um dos tipos mais comuns de arritmia cardíaca e pode reduzir o fluxo sanguíneo cerebral na ordem de 20 a 30%. Pode ter gatilhos hipertensão arterial, diabetes e obesidade. Além disso, contribui para a formação de coágulos dentro do coração, os quais podem ser ejetados para a circulação cerebral, causando um acidente vascular cerebral (AVC). Esses pacientes tendem a necessitar de medicamentos anticoagulantes, justamente para prevenir a formação dos coágulos.
Já a manutenção dos níveis estáveis de pressão arterial está associada com um débito cardíaco também estável. O débito cardíaco, por sua vez, é resultado da multiplicação do volume de sangue que é ejetado a cada batimento pelo número de batimentos por minuto. A queda do débito cardíaco pode ser vista na insuficiência do coração, ou seja, em um estágio mais avançado de inúmeras doenças como obstruções arteriais, refluxo de valvas, aneurismas e processos inflamatórios do músculo cardíaco. Ele também resulta num fluxo cerebral abaixo do esperado.
O controle da pressão arterial é mandatório para reduzir o risco de derrame cerebral. Os picos de pressão arterial podem ocasionar dois efeitos preocupantes: o espasmo das artérias cerebrais ou o rompimento delas O espasmo consiste em uma restrição de fluxo ao cérebro e o rompimento de artérias causa hemorragia de diferentes proporções. O primeiro fenômeno está associado ao AVC isquêmico; o segundo, ao hemorrágico. São condições que podem ter como sintomas de forte dor de cabeça a paralisia dos membros.
+ LEIA TAMBÉM: Entenda o que é aneurisma cerebral
Nas últimas décadas, as conexões entre coração e cérebro ficaram mais evidentes com o aumento das taxas de doença de Alzheimer e demência. Estudos indicam que a presença de obstruções arteriais no coração está intimamente associada com o depósito da proteína beta-amiloide na massa cinzenta – um dos principais mecanismos por trás do Alzheimer.
Alguns trabalhos correlacionam a hipertensão arterial mal controlada com depósitos cerebrais das proteínas beta-amiloide e tau, ambas relacionadas com o quadro de colapso cognitivo. Existe também uma relação entre o depósito de gordura e enrijecimento das artérias cerebrais e o desenvolvimento de demência, principalmente em pessoas com 65 anos ou mais.
O Colégio Americano de Cardiologia tem enfatizado a importância das mudanças de estilo de vida e controle de fatores de risco (tabagismo, colesterol elevado, diabetes, hipertensão…) para prevenção tanto das doenças cardiovasculares como das cerebrais. Mais recentemente, o surgimento de algumas tecnologias e recursos de inteligência artificial trouxeram avanço e segurança às estratégias preditivas e preventivas – elas incluem de testes genéticos a exames de imagem refinados.
Estima-se que aproximadamente 50% da população mundial acima dos 20 anos apresenta algum tipo de doença ou fator de risco cardiovascular, estando sujeita a infarto, AVC e outras complicações. Menos de 25% das pessoas fazem atividade física regularmente e a obesidade e o sobrepeso já atingem entre 50 e 70% dos cidadãos de alguns países, elevando a ameaça desses eventos graves.
As doenças que conectam o coração e o cérebro são influenciadas, portanto, por algumas de nossas escolhas. Está em nossas mãos – e na dos profissionais e gestores de saúde – ampliar o cuidado com esses dois órgãos essenciais.
* Edmo Atique Gabriel é cardiologista e cirurgião cardíaco, professor universitário e coordenador do curso de medicina da Unilago, em São José do Rio Preto (SP)