O governo prevê para as próximas semanas o epílogo das investigações sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Será a “elucidação definitiva”, nas palavras do ministro da Justiça, Flávio Dino, ou “a resposta final”, na definição do delegado Andrei Rodrigues, diretor da Polícia Federal.
O momento do anúncio é relativo na agenda governamental. Pode ocorrer na próxima semana, quando Dino deixará o ministério — ele voltará ao Senado para renunciar ao mandato para assumir a cadeira de juiz no Supremo Tribunal Federal na quinta-feira 22 de fevereiro. Na contagem regressiva da polícia, pode acontecer até as águas de março fecharem o verão.
Marielle foi morta em 2018, aos 38 anos de idade. Sua história é incomum na paisagem de pobreza às margens da Baía de Guanabara: trabalhou como camelô e dançarina de funk antes de se diplomar em sociologia. Foi recrutada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no ativismo em defesa das vítimas (civis e policiais) do faroeste carioca. Tinha um ano de mandato de vereadora e um projeto de lei ruim para os negócios imobiliários das máfias do Rio, quando foi fuzilada dentro do carro, com o motorista, na quarta-feira 14 de março de seis anos atrás.
A resolução “definitiva” desses assassinatos, numa noite de lua minguante no Centro da cidade, depende de apuração que vá além da contundência da trama das mortes por encomenda e dos personagens envolvidos, alguns já presos. A “resposta final” será verossímil, mas pouco densa, se não iluminar os porões da política no eixo Rio-Brasília. Arrisca-se à tibieza, se não expuser ao público as alianças palacianas que impulsionam máfias na guerra pelo domínio territorial de comunidades pobres, como a Maré de Marielle, relevantes na logística do contrabando de drogas e armas e, também, na exploração de serviços de construção, transporte, gás, luz, televisão a cabo e internet.
O Rio é vitrine cosmopolita do crime organizado. Tem peculiaridades como a cobrança de “pedágio” (500 000 reais) na instalação de canteiro de obra pública, segundo o prefeito Eduardo Paes (PSD). Mas, na essência, “não é muito diferente do resto do Brasil”, lembra o juiz Luís Roberto Barroso, presidente do STF.
“‘Resposta final’ só com luz nos porões da política Rio-Brasília”
É o enclave portuário do Atlântico Sul onde mais vicejam grupos armados sob patrocínio estatal, na simbiose do banditismo policial e gangues do narcotráfico patrocinada por políticos beneficiários. Juntos, avançam em terreno demarcado pela ausência do Estado e, principalmente, em espaços institucionais — governo, Judiciário e Legislativo. Em 2022, por exemplo, o ex-chefe da polícia fluminense Allan Turnowski tentava se eleger deputado federal pela fração bolsonarista do Partido Liberal, quando foi preso como agente duplo, acusado de servir à lei e ao crime. Não é casual que 43 políticos do estado do Rio tenham sido assassinados nas últimas duas décadas. Entre eles, a repórter Julia Noia identificou 23 vereadores, como Marielle.
Na política, prevalece a cegueira deliberada. O governo federal empurra a insegurança pública para os governos estaduais, que devolvem com a cobrança de mais vigilância e repressão nos 15 000 quilômetros de fronteira seca com dezena de países da América do Sul. Enquanto isso o “PIB do crime” se expande, com narcomilícias já disputando liderança entre principais empregadoras no Sudeste, no Nordeste e na Amazônia.
Um painel sobre a engrenagem política de amparo ao crime organizado está no recém-lançado Decaído, de Sérgio Ramalho. É um passeio pela história de Adriano da Nóbrega, antigo capitão do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar fluminense que se tornou milionário chefão do “Escritório do Crime”, agência de matadores de aluguel empreitada na execução de Marielle.
O livro mostra como o banditismo policial cresce no faroeste urbano das máfias, sob proteção dos clãs políticos. Foi o caso de Nóbrega, “caveira” do Bope, ligado aos Bolsonaro. Os deputados Jair e o filho Flávio, hoje senador, o ajudaram na carreira policial, empregaram seus parentes em gabinetes parlamentares, sem exigência de trabalho, o homenagearam como “herói” em discursos e deram-lhe medalha por “serviços relevantes”.
No verão de 2020, início da pandemia, Nóbrega viu-se cercado numa fazenda baiana. Telefonou para o senador Flávio Bolsonaro. Não foi atendido. Morreu com dois tiros de fuzil no tórax. O senador Bolsonaro divulgou a suspeita de que teria sido torturado e executado por ordem do governo do PT na Bahia. Na Presidência da República, Jair lembrou o “heroísmo” do decaído.
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Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876