Lula teve a oportunidade de liderar uma coalizão pela reconstrução do Rio Grande do Sul, mas preferiu dar uma cor política ao rio de enchente que há três semanas desafia a resiliência dos 11 milhões de gaúchos.
Criou o 39º ministério para centralizar as iniciativas federais na recuperação do estado, devastado por três enchentes em oito meses, depois de um biênio de perdas e danos acumulados em severa estiagem. Entregou-o a seu ministro da propaganda, o deputado federal licenciado Paulo Pimenta, reconhecido no Partido dos Trabalhadores como virtual candidato ao governo estadual nas eleições gerais de 2026.
Pimenta, 59 anos, estreou na política há quatro décadas, depois de levar um tiro enquanto pichava um muro em Santa Maria, cidade onde se elegeu vice-prefeito na virada do milênio. Suas novas atribuições são peculiares, equiparáveis à de um delegado do Palácio do Planalto. Terá poder sobre a partilha das verbas entre prefeituras e, também, sobre as negociações com organismos multilaterais para financiar nova infraestrutura em 88% do território gaúcho.
Ao escolher um virtual candidato do PT ao governo estadual, Lula suprimiu expectativas de neutralidade política. Estimulou desconfiança sobre suas iniciativas no estado, onde há apenas dezoito meses perdeu a eleição para Jair Bolsonaro por uma diferença de 800 000 votos válidos (12% do total).
É razoável criar uma coordenação para dar eficácia ao socorro aos gaúchos. Justifica-se até pela dificuldade do governo federal de lidar com a própria realidade, fragmentada em 39 ministérios com 53 000 órgãos espalhados por 1 400 cidades, sem contar a miríade de conselhos, câmaras setoriais e grupos de trabalho.
Nesse labirinto administrativo há dois mundos em permanente rota de colisão. Um é o de Lula, em discursos ou comícios como o da semana passada em Porto Alegre. Outro é o do governo Lula, nas ações.
Existe na estrutura governamental um Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima. Foi criado em 2019, antes da pandemia e sob pressão da ONU. Sua função no papel é a de “estabelecer diretrizes, articular e coordenar” a execução de políticas públicas sobre eventos climáticos. Chefiado pela Casa Civil, tem participação obrigatória de todos os ministérios. Os registros mostram apenas três reuniões nos últimos 52 meses.
“Lula preferiu dar uma cor política à reconstrução do Rio Grande do Sul”
Sob Bolsonaro, os ministros se preocuparam em discutir o nome do comitê — acrescentaram “Crescimento Verde”. Em seguida, festejaram a privatização da Eletrobras como “pedra fundamental para agenda climática”, informa a ata que subscreveram.
Eles dividiram o mapa-múndi em duas partes: a da “economia verde” (EUA e Europa) e a da “economia cinza poluente” (China e Rússia). E aprovaram uma proposta de “plano de industrialização atrelado ao crescimento verde” para “aproveitar o momento geopolítico”. Reivindicaram incentivos fiscais à “indústria verde”, recomendando a inclusão da indústria automobilística “com todos os benefícios indicados”.
Sob Lula, houve uma única reunião do comitê. Em setembro do ano passado, Rui Costa, chefe da Casa Civil, comandou a mesa com dezessete ministros e o vice-presidente, Geraldo Alckmin, que acumula o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Costa sugeriu “ações transversais relacionadas a vários ministérios, a partir da criação de grupos e subgrupos, com amplo debate e escuta da sociedade”.
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, indicou um plano de “transformação ecológica” e a criação de um Conselho Nacional de Segurança Climática para “lançar as bases da nova política climática brasileira”. No papel, certificou-se como “canal” governo-sociedade o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, definido como “instância fundamental na gestão sistêmica de soluções”.
A reunião acabou com o anúncio da criação de três grupos técnicos temporários, sob aplausos do vice-presidente Alckmin ao “ótimo trabalho”. Na época, os gaúchos emergiam da primeira enchente, depois de prolongada seca. Seriam surpreendidos por outra nos dias seguintes — ainda há pessoas desaparecidas —, e devastados na atual torrente.
A lentidão e as insuficiências perceptíveis na lama da burocracia, somadas ao veneno político-eleitoral borrifado sobre o pampa, podem ter consequências graves. O desastre no Rio Grande do Sul indica ruptura, e não entender isso significa assumir o risco de acabar afogado em desconfiança.
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Publicado em VEJA de 17 de maio de 2024, edição nº 2893