A felicidade existe, alguns conseguiram localizá-la na folha de pagamentos do serviço público brasileiro. Ali, a elite do funcionalismo descobriu uma fonte de satisfação na remuneração pelo dever, alheia à crise na paisagem ao redor dos palácios de Brasília, onde mais da metade das famílias patina na pobreza e no endividamento recorde.
O Judiciário, por exemplo, decidiu aumentar salários em 18%. O Ministério Público soube e correu atrás, agitando a bandeira da “paridade”. Como é inevitável o efeito em cascata, quase 800 000 servidores de carreiras jurídicas na União, nos Estados e nos Municípios devem ter novos motivos para sorrir no réveillon.
O Judiciário já paga, na média, o triplo da remuneração do Executivo e o dobro do Legislativo, informa o Ipea. O novo aumento vai custar 6 bilhões de reais nos próximos dois anos, somente na área federal. É volume de dinheiro equivalente ao que a Petrobras conseguiu recuperar dos prejuízos com má gerência e corrupção desvendadas na Lava-Jato. Numa conta de padaria, é quantia suficiente para construir creches em metade dos municípios.
Cresce a distância, que já era grande, entre ganhos dos servidores públicos e dos trabalhadores do setor privado. Ela realça o papel do Orçamento público como instrumento de concentração de renda na sociedade que é das mais desiguais do planeta, onde descendentes dos mais pobres levam nove gerações para alcançar o nível médio de renda nacional, cerca de 2 500 reais por mês.
Nos últimos dez anos, a vantagem dos contratados com carteira assinada na administração pública sobre os do setor privado foi de 20%, depois de descontada a inflação, segundo os dados do IBGE. O cenário fica mais desequilibrado, mostra o Ipea, quando se comparam pagamentos por salário-hora: servidores ganham mais que o dobro dos trabalhadores privados, porque têm cinco horas a menos de jornada semanal. Além disso, têm estabilidade no emprego. O risco de demissão no serviço público é mínimo.
“Não importa a crise, a elite de servidores sempre aumenta os ganhos”
O maior aumento salarial entre os servidores na última década aconteceu nas Forças Armadas. A remuneração média dos militares avançou 29,6% acima da inflação do período — o dobro das demais categorias do funcionalismo federal, estadual e municipal, informa o Centro de Liderança Pública.
Tortuosa como mapa de navegação na Amazônia, a folha de pessoal da União abriga duas centenas de carreiras e 170 rubricas diferentes para pagamentos a civis e militares na ativa, aposentados e pensionistas. Transparência rarefeita é a regra.
Iniciantes nas carreiras jurídicas, de planejamento e de fiscalização ganham acima de 21 000 reais. Chegam ao topo uma década depois com salário superior a 30 000 reais. Sete das dez profissões com maiores salários no país estão no Ministério Público, com remuneração entre 35 800 e 41 300 reais mensais. Outras três estão no setor financeiro e na indústria.
Além disso, há miríade de penduricalhos na forma de auxílios e abonos, inclusive por tempo de trabalho. Esses pingentes salariais ajudam a driblar limites de remuneração no serviço público. Elevam os ganhos da elite burocrática a níveis surrealistas.
No Judiciário sustentam um salário médio que é o triplo do Executivo e o dobro do Legislativo. Nas Forças Armadas justificam pagamentos líquidos superiores a 100 000 reais mensais, como ocorreu entre janeiro e maio com 1 500 oficiais militares.
Pouco visíveis, os supersalários permeiam o serviço público e reforçam sua disfuncionalidade. Em plena pandemia, em 2020, Walter Braga Netto, general na reserva e na época chefe da Casa Civil, recebeu 926 000 reais por férias acumuladas. Braga Netto é candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro, pelo Partido Liberal.
O Judiciário foi além. Chegou ao requinte de transformar a punição de juízes numa espécie de prêmio salarial. Dias atrás, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou um desembargador por ofensa e intimidação a uma policial. Retirado da função, ele vai ficar em casa recebendo remuneração proporcional à de juízes que continuam no trabalho. “Há meia dúzia de juízes punidos e sendo pagos pelo resto da vida com dinheiro público pelo crime que cometeram. Ou seja, o crime compensa” — ironiza o deputado Rubens Bueno, do partido Cidadania do Paraná, relator de um projeto de lei que restringe os supersalários no setor público. Aprovado pelos deputados, acaba de completar um ano estacionado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O motivo é um dos mistérios da República.
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Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803