Duas noites num ônibus, 45 horas na estrada. Os lavradores saíram de Hulha Negra, no extremo sul gaúcho, e viajaram 2 500 quilômetros até Brasília. Foram pedir socorro ao Congresso. “Não estamos pedindo nada de graça”, apelou Celso Girotto, porta-voz do grupo de 300 agricultores familiares em audiência na Câmara. Aos 59 anos, ele passou os últimos 35 cultivando um lote de 20 hectares num assentamento de reforma agrária e até hoje não recebeu o título da terra prometido pelo governo.
Os 6 000 habitantes de Hulha Negra viveram sete episódios de calamidade pública nos últimos 24 meses. Podem chegar ao oitavo decreto municipal com as tempestades de novembro. “Perdemos tudo”, contou Girotto. “Hoje estou ‘negativado’ nos bancos, sem custeio e com ação judicial de busca e apreensão de máquinas, assim como meus vizinhos.”
Resistiram a quatro secas, seguidas de chuvas intensas, e, na sequência, à devastação do rio de enchente. Agora, em Hulha Negra e outras 450 cidades, os gaúchos tentam sobreviver à cilada da burocracia estatal: seis meses depois da catástrofe, a ajuda financeira emergencial anunciada pelo governo federal não chegou para os mais afetados, quatro em cada dez agricultores, na estimativa estadual.
Enquanto o mato cresce na lama, mais de 600 ofícios foram enviados aos ministérios, contou Graziele de Camargo, coordenadora do SOS Agro, movimento criado pelas entidades de produtores em Porto Alegre: “Era para ser simples, como prometido pelos ministérios da Agricultura e de Apoio à Reconstrução (recém-extinto). Nós aguardamos. Mas não há como plantar sem dinheiro. Temos produtores que estão tentando fazer uma ‘planta’ de qualquer maneira, sem adubo, sem sementes de qualidade, sem tecnologia e muito menos inovação. Não temos reconstrução de solo, e foi falado que haveria uma linha (de crédito) para isso. Existem, sim, muitos anúncios, mas só queremos saber onde está o dinheiro anunciado. Quem ficou com esses recursos? Mais de 40% dos nossos produtores têm dívidas, que precisam quitar para continuar na atividade. É muito triste passar seis meses dizendo que queremos trabalhar”.
“Seis meses depois da catástrofe, as vítimas perguntam: ‘Onde está o dinheiro?’ ”
O plenário ouvia em silêncio. Ninguém sabe, ninguém viu a ajuda federal, acrescentou Girotto: “Você chega no banco, e os gerentes sabem menos do que você. Em Bagé, gerentes pediram que trancássemos o banco e fizéssemos manifestação: ‘Quem sabe assim o governo enxerga’. Não fizemos. Acreditamos nas promessas. O governo esteve lá, viu, ouviu-nos e se comprometeu a resolver. Mas depois de tantas medidas anunciadas, continuamos sem condições de plantar. Os recursos que foram divulgados na imprensa realmente não chegaram. A época de plantar foi passando, muitos nem vão mais plantar”.
A “janela” de plantio, período propício à semeadura, não é elástica como o calendário da burocracia, lembrou Luís Fernando Pires, da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul. Há 180 dias, contou, pediu-se crédito emergencial para agricultores liquidarem dívidas com bancos, cooperativas e cerealistas. “Infelizmente, o governo passou dois meses perdendo tempo, discutindo uma importação de arroz que, depois, foi cancelada porque o próprio presidente (Lula) disse que existia falcatrua.” Publicaram-se vinte medidas, entre provisórias, portarias, circulares e resoluções. Uma dessas, a da linha especial de crédito do BNDES, demorou cinquenta dias e só começou a valer no último 11 de outubro: “Pedimos 20 bilhões de reais, apareceram só 400 milhões. Em cinco minutos acabou o dinheiro. E todos sabem que, nas condições impostas, os produtores não vão ter como pagar em quatro anos”.
O solo lamacento precisa ser recuperado para plantio, e isso não custa pouco: cerca de 700 000 reais por 100 hectares, na estimativa da Embrapa. Sem garantias para empréstimos, sitiados pelas dívidas acumuladas e rendidos pela indescritível burocracia governamental, muitos produtores gaúchos estão mudando de rumo, em migração para o vizinho Uruguai — contou Enio Nascimento, vice-presidente da Cotribá, centenária cooperativa agrícola criada por imigrantes alemães que hoje predomina na metade sul gaúcha.
A audiência na Câmara avançava. O assentado do Incra Celso Girotto se despediu dos deputados, senadores e burocratas dos ministérios: “Os senhores vão ser responsáveis por resolver, ou vão ficar na história como aqueles que não ajudaram”. Voltou ao ônibus para mais 45 horas de estrada até Hulha Negra, a meia centena de quilômetros de distância das férteis terras uruguaias.
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Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919