Rota de colisão
Por causa de Putin, Lula quer deixar o Tribunal Penal Internacional. Essa lógica leva ao abandono do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares
Lula se encanta com a própria voz. No governo fala muito, sempre para plateias escolhidas, ansiosas por ouvir discursos graciosos, inteligentes e brilhantes. Pode ser uma forma de compensação da abstinência nas entressafras eleitorais, fase em que ex-candidatos se perdem no silêncio das ruas. Ele passou a última década obrigado à equidistância das urnas: em 2014, Dilma Rousseff liquidou seu plano de retorno ao assumir o controle do fluxo de caixa do Partido dos Trabalhadores; em 2018, ficou enredado na Lava-Jato e foi cumprir pena numa cela em Curitiba.
Em público, Lula costuma rir ao recordar as madrugadas insones em casa depois de eleições frustradas. Saltava da cama e se refugiava na cozinha do apartamento de São Bernardo do Campo (SP). Abria a geladeira, via as luzes acesas e não resistia: fazia um breve e imaginário discurso na gélida solidão iluminada. Voltava para a cama e dormia “tranquilamente”.
Ele atravessou as últimas quatro décadas e meia na política recontando a sua história com outros. Na permanente reconstrução da biografia adquiriu o hábito de atropelar fatos e criar versões adequadas à trapaça de compromissos inconvenientes. Com Lula, as palavras voam — e os escritos também.
Num exemplo da semana passada, disse que desconhecia o Tribunal Penal Internacional, criado para investigar e julgar líderes como o russo Vladimir Putin acusado de crimes contra a humanidade em sua guerra imperialista na Ucrânia.
Lula era candidato em 2002, quando o Brasil ratificou o tratado e incorporou a jurisdição do TPI à Constituição (Artigo 5º, parágrafo 4º). Na época, recebia discreto amparo de magnatas do ativismo antiamericano como Putin, hoje impedido de sair da Rússia por ter mandado de captura e prisão do tribunal, no qual o Brasil está associado a outros 122 países.
“Por causa de Putin, Lula quer deixar o TPI. Essa lógica leva ao abandono do TNP”
“Eu nem sabia da existência desse tribunal”, alegou Lula, em Nova Délhi, na Índia. Quem quiser, acredite, mas a tarde de segunda-feira 28 de outubro de 2002 foi daquelas inesquecíveis para quem acordou eleito presidente da República com 61,2% dos votos válidos. Num hotel de São Paulo, leu um discurso de 2 000 palavras, e disse: “Nosso governo respeitará e procurará fortalecer os organismos internacionais, em particular a ONU e os acordos internacionais relevantes, como o protocolo de Kyoto e o Tribunal Penal Internacional, bem como os acordos de não proliferação de armas nucleares e químicas”.
O primeiro discurso presidencial nenhum presidente eleito esquece, da mesma forma como o ex-deputado constituinte Luiz Inácio da Silva não apaga da memória a Constituição que ajudou a escrever, mesmo tendo relutado em assiná-la. No primeiro mês de governo, em 2003, Lula achou relevante mobilizar o Itamaraty para garantir um juiz brasileiro nesse tribunal. Conseguiu.
Duas décadas depois, Lula, o Partido dos Trabalhadores e organizações satélites perceberam a utilidade do Tribunal Penal Internacional numa ofensiva política contra o adversário Jair Bolsonaro, incriminando-o pelo pandemônio governamental na pandemia que matou mais de 700 000 brasileiros e, também, por crimes contra a humanidade na Amazônia. Em abril, ele até propôs a submissão de Bolsonaro a tribunal internacional “pela atuação na pandemia”.
Agora, em gratidão a Putin, achou conveniente “esquecer” a existência e até questionar o poder do TPI. Pôs na mesa a possibilidade de revisão do tratado, difícil porque precisaria alterar cláusula pétrea da Constituição. Argumentou: “Os Estados Unidos não são signatários dele, a Rússia não é signatária dele… Então, eu quero saber por que o Brasil é signatário de um tribunal que os EUA não aceitam. Por que somos inferiores e temos de aceitar uma coisa?”
Na quarta-feira (13/9), o ministro da Justiça Flávio Dino confirmou a intenção do governo: “Em algum momento a diplomacia brasileira pode rever essa adesão a esse acordo, uma vez que não houve essa igualdade entre as nações.”
Uma consequência dessa lógica aplicada à política externa seria a revogação da proibição na Constituição ao desenvolvimento de armas atômicas. Outra, por coerência, seria abandonar o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), rejeitado pela ditadura militar e subscrito pelo país no 12º ano da redemocratização, em 1997. Até hoje, Estados Unidos, China e Rússia não aceitam o TNP ou quaisquer restrições aos seus arsenais.
Encantado com a própria voz, Lula se arrisca a entrar em rota de colisão com a própria biografia, a Constituição e, principalmente, com a História.
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Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859