Por Universal e Crivella, Bolsonaro expõe Brasil a vexame na África
Se não ligam à humilhação pública e pessoal, é problema deles. Mas deveriam poupar a diplomacia nacional das perdas, danos e vexame no continente africano
Tudo bem, se Marcelo Crivella e seu amigo Jair Bolsonaro não se incomodam com a humilhação pública e pessoal. É problema deles. Mas deveriam se preocupar em proteger a diplomacia brasileira de perdas, danos e vexame no continente africano.
No último outono, Bolsonaro pediu ao governo da África do Sul consentimento para nomear o ex-prefeito do Rio na função de embaixador do Brasil na capital Pretoria.
Depois de quatro meses sem resposta, insistiu num telefonema ao presidente sul-africano Cyril Ramaphosa. Continuou sem uma reação objetiva.
No idioma da diplomacia, o som do silêncio nesses casos costuma ser a maneira elegante de se pronunciar a palavra “não”.
O presidente e o ex-prefeito sabem, mas dissimulam por razões só explicáveis pelo jogo eleitoral no Rio para 2022.
Crivella integra a cúpula da Universal, maior fração do televangelismo brasileiro. Ela emergiu dos subúrbios do Rio, nos anos 1980, no vigor do movimento evangélico, que cresceu
540% nas décadas seguintes, alcançando 42,2 milhões de fiéis autodeclarados (Censo de 2010).
Floresceu no televangelismo da teologia da prosperidade, num amálgama de interesses entre igreja,rede de rádio e televisão, banco e partido político. É sócia majoritária no Republicanos, com 31 deputados federais e um senador. A eficiência da máquina eleitoral projetou Crivella, que se elegeu senador, foi ministro da Pesca no governo Dilma Rousseff (PT) e, depois, prefeito do Rio.
É visto como herdeiro do tio, Edir Macedo, na liderança dos negócios do grupo neopentecostal, desde sua empreitada bem sucedida com o televangelismo na África do Sul, onde viveu nos anos 1980.
Foi um êxito para a Universal, principalmente na expansão para Angola, que logo se tornou um dos principais centros de arrecadação do grupo. Com o tempo, o modo Macedo de governança passou a ser contestado pelos seguidores angolanos.
Em 2019, a crise angolana evoluiu para um cisma. Cerca de 320 integrantes do segundo escalão local da Universal proclamaram a separação, justificando-a com denúncias de delitos da hierarquia brasileira. Numa noite de maio do ano passado, assumiram 85 templos em várias províncias cristalizando a rebelião contra a liderança brasileira. Rupturas já faziam parte da paisagem da Universal nos EUA, Reino Unido, Bélgica e Zâmbia.
Os problemas da Universal angolana nada têm a ver com interesses do Estado brasileiro. São de natureza particular, numa organização de direito privado. No entanto, Bolsonaro resolveu usar a presidência e o Itamaraty para intervir no cisma da Universal. Tomou parte na briga.
Em julho do ano passado apelou à interferência direta do presidente angolano João Lourenço na disputa. Em correspondência, classificou o embate pelos templos como “invasões” e qualificou os dissidentes locais como “ex-membros” da Universal. Lourenço respondeu-lhe, por escrito, com a força da ambiguidade diplomática: “(O caso) terá o tratamento cabível na Justiça”.
O ano terminou numa tempestade perfeita para a Universal. Além de perder a base de arrecadação em Angola, seu protagonista na política fluminense, Crivella, se tornara o primeiro prefeito carioca a ter as contas rejeitadas. Foi condenado na Justiça Eleitoral, por abuso de poder. Em seguida, preso por ordem do Superior Tribunal de Justiça, acusado de corrupção.
Quando Bolsonaro pediu ao governo da África do Sul consentimento para nomeá-lo embaixador brasileiro em Pretoria, Crivella sequer podia sair do país. Havia uma proibição judicial e seu passaporte estava apreendido, medidas só revogadas dois meses depois, em agosto.
Bolsonaro persistiu no uso do Estado para defender negócios de aliados políticos. Enviou o vice-presidente Hamilton Mourão a uma conferência de cúpula na África, em julho, com a missão de pressionar o governo de Angola por solução favorável os interesses da Universal. Deu errado.
O apelo ao presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, na quinta-feira 7 de outubro, foi uma tentativa de pressionar a diplomacia sul-africana a aceitar a indicação Crivella como embaixador brasileiro. Duas semanas depois, não há indício de que tenha dado certo.
Ainda que, eventualmente, a África do Sul resolva ceder pelo cansaço, o ex-prefeito do Rio precisaria superar as resistências à sua aprovação no Senado, que hoje são similares às da indicação de um dos filhos parlamentares do presidente para a embaixada brasileira nos Estados Unidos.
A insistência de Bolsonaro transformou o caso Crivella em piada política no Rio. Eduardo Paes, prefeito carioca, publicou mensagens em zulu, africâner e em inglês — idiomas falados no país — com apelo a Ramaphosa para que aceite Crivella no território sul-africano: “Por favor, Senhor Presidente da África do Sul, aceite o novo embaixador designado do Brasil na África do Sul. Você será amado para sempre pelos cariocas depois de fazer isso! Vá em frente”.
Bolsonaro se arrisca no uso de meios e recursos estatais para defesa de interesses privados de aliados políticos no exterior. E põe em risco um legado diplomático de 45 anos na África, consolidado pelo Itamaraty no regime militar, quando o Brasil foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola.
Se o presidente e o ex-prefeito não ligam para a humilhação pública e pessoal, pelo menos poderiam combinar uma saída “honrosa” para todos. Crivella poderia renunciar à embaixada. Caso lhe falte inspiração pode tomar emprestado um modelo de carta-renúncia da lavra do escritor inglês Oscar Wilde (1854-1996): “Infelizmente, devo declinar do seu convite, em razão de um compromisso assumido posteriormente.”