Clique e Assine VEJA por R$ 9,90/mês
Imagem Blog

José Casado

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Informação e análise
Continua após publicidade

O ronco das ruas

A direita realizou o que a esquerda achava impossível: provocou a volta dos protestos

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 21 jun 2024, 15h42 - Publicado em 21 jun 2024, 06h00

A direita realizou uma proeza que a esquerda já considerava quase impossível: provocar o retorno das manifestações de protesto nas redes e nas ruas.

Caíam as últimas folhas de outono quando milhares fantasiados de verde-amarelo invadiram a Avenida Paulista na Parada Gay. Faziam uma bem-­humorada crítica aos bolsonaristas, que há seis anos tentam se apropriar de símbolos como as cores da República. Referência à bandeira do Brasil Império, criada em 1820 pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret, o verde seria alusão à Casa de Bragança, origem portuguesa de D. Pedro I, e o amarelo, à Casa de Habsburgo, berço austríaco de D. Leopoldina.

Tentativas de apropriação da história e de símbolos nacionais fazem parte da paisagem política. Às vezes, resultam em tiro no pé. Em 1966, a ditadura tentou impor às escolas de samba um cardápio de enredos para o Carnaval. Em resposta, o cronista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) fez um samba sobre um compositor aflito com a ordem do dia para tratar da conjuntura nacional em perspectiva histórica.

Emoldurou o casal de imperadores numa sátira antológica, cantada por Mussum e os Originais do Samba: “Foi em Diamantina onde nasceu J.K. / E a princesa Leopoldina lá resolveu se casar / Mas Chica da Silva tinha outros pretendentes / E obrigou a princesa a se casar com Tiradentes / Laiá, laiá, laiá, o bode que deu vou te contar. / Joaquim José, que também é da Silva Xavier / Queria ser dono do mundo / E se elegeu Pedro Segundo / Das estradas de Minas, seguiu pra São Paulo / E falou com Anchieta / O vigário dos índios / Aliou-se a Dom Pedro / E acabou com a falseta / Da união deles dois ficou resolvida a questão / E foi proclamada a escravidão…”.

Dias depois da zombaria gay em verde-amarelo na Paulista, um vento frio bafejou a nuca do senador Flavio Bolsonaro (PL-RJ) e aliados quando tentavam mudar a Constituição para transferir terrenos de marinha da União aos estados, prefeituras e ocupantes privados. Foi vigorosa a reação social contra a “privatização das praias”.

“A direita realizou o que a esquerda achava impossível: provocou a volta dos protestos”

Continua após a publicidade

Teve o efeito de um ciclone político. O Congresso foi inundado por uma torrente de manifestações públicas de desconfiança sobre a prevalência de interesses patrimonialistas, pessoais e empresariais, em decisões legislativas. Arthur Lira, responsável pela aprovação na Câmara, recolheu-se ao lamento. Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, achou prudente mandar o projeto para o túnel do tempo indeterminado.

Na sequência, Lira precisou de apenas 23 segundos para sancionar a “urgência” na votação de um projeto do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Associado ao pastor carioca Silas Malafaia, o ativista radical religioso mais próximo de Jair Bolsonaro, o evangelista Cavalcante é protagonista na guerra em curso na cúpula evangélica neopentecostal. Ele deseja transformar em assassinas as mulheres violentadas que fazem aborto. E quer deixá-las na cadeia pelo dobro do tempo dos criminosos condenados por estupro.

A resposta foi dura e imediata. Nas ruas de São Paulo, como em outras cidades, propagaram-se protestos endereçados em faixas e cartazes improvisados: “Lira inimigo das mulheres e das crianças”. Nas redes sociais houve uma avalanche: 5 milhões de mensagens em 48 horas — e oito em cada dez eram de repúdio ao Congresso, constatou a Quaest.

O ronco das ruas atordoou muitos em Brasília. O senador Eduardo Girão (Novo-CE), que carrega no bolso a reprodução em plástico de um feto, patrocinou uma horrenda encenação sobre aborto no plenário. Lula chegou atrasado ao debate e exagerou: “Que monstro vai sair do ventre de uma menina estuprada?”. Lira e Pacheco resolveram remeter o projeto ao túnel do tempo indeterminado.

Aspecto relevante é a espontaneidade das mobilizações, à margem de partidos que antes dominavam as ruas, como o PT e aliados. Eles optaram pela prioridade à aprovação de projetos econômicos do governo, aqueles sobre os quais nem o governo se entende. Por isso, sancionaram a “urgência” da aberração legislativa sobre aborto, aceitaram votação simbólica — sem registro de voto dos deputados — e liberaram as próprias bancadas.

Continua após a publicidade

Esse comportamento equidistante, mas interessado, tende a se repetir na decisão sobre anistia ampla, geral e irrestrita aos delitos cometidos nas finanças dos partidos, que neste ano partilham 1,2 bilhão de dólares (6,7 bilhões de reais) em dinheiro público.

É coerente com o ambiente de liquefação no qual políticos se tornam um grupo social com espírito de casta, empenhados na defesa dos próprios interesses, antes e acima dos interesses da sociedade que dizem representar.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 9,90/mês*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.