Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton conversavam sobre as agruras da vida de presidente no tumulto do fim da década de 90. Clinton se queixou:
— Você nem imagina o que eu enfrento todo dia com o meu partido…
— Sei como é.
— Aqui tem uma minoria organizada que perturba muito. Você também tem isso por lá?
— Sim, mas um pouco diferente. O meu problema é a maioria desorganizada.
Fernando Henrique contou essa história na volta da viagem aos Estados Unidos, enquanto dividia uma pizza dominical com parlamentares aliados no Palácio da Alvorada. Riram muito. Principalmente porque era tudo verdade.
O Brasil elege presidente com mais de 50% dos votos, mas só o deixa governar se fizer alianças no Congresso. Vencer nas urnas é apenas o começo. Seja Lula, seja Jair Bolsonaro, na noite de domingo, dia 30, alguém terá motivos para celebrar. Na manhã seguinte, o vencedor começa a viver a longa ressaca da vitória: negociar maiorias ocasionais para aprovar propostas de governo num Legislativo cada vez mais autônomo e onde o maior partido não possui mais do que 20% dos votos.
Será assim pelos cinquenta meses seguintes, até a quinta-feira 31 de dezembro de 2026. Começa no jogo de formação do governo — dos nomes para o ministério imaginado pelo eleito, só um terço costuma aparecer no Diário Oficial de 1º de janeiro.
No Palácio do Planalto, a rotina é de escolhas sobre como vai se entender com o Congresso para conseguir o que deseja. Duas alternativas estão sempre disponíveis — coalizão com objetivos programáticos ou cooptação com fatias do Orçamento.
A opção é sempre pessoal e intransferível, sobretudo no ônus político. Exemplo recente é o de Michel Temer. Anunciou um ministério de “notáveis” quando substituiu Dilma Rousseff, apeada do poder por impeachment. Fez uma opção preferencial pela antiga metodologia de partilha orçamentária e teve dois ministros encarcerados (Henrique Alves e Geddel Vieira Lima).
“O novo governo será refém de maioria efêmera e desorganizada”
Maiorias governamentais no Legislativo são efêmeras e, na essência, contraditórias. Fernando Henrique conseguiu em dois mandatos (1995-2002) um recorde de reformas políticas e econômicas aprovadas — da reeleição à quebra do monopólio do petróleo —, quase sempre com mais de 340 votos, quando precisava de 308 na Câmara, em dois turnos de votação. Nas memórias expôs o paradoxo: para o “novo” avançar, o apoio do atraso é requerido. Sua agenda não previa retrocessos nas práticas e nos costumes nacionais, mas o histórico institucional mostra que, para isso, é ainda mais difícil o aval político.
Os eleitores, sempre autoindulgentes, votaram sem culpa na estrutura política que habitualmente criticam. Desenharam um Congresso conservador, com predominância de forças rotuláveis de centro-direita. Nesse aspecto, os futuros plenários não diferem muito dos que estão aí. Cresceu a representação da extrema direita, que terá uma bancada de três dezenas — o dobro da extrema esquerda — no conjunto de 594 deputados e senadores. Assim, é previsível maior estridência nos embates sobre temas como famílias homoafetivas, aborto, armas, garimpo, terras indígenas e educação domiciliar.
A Câmara foi parcialmente renovada, mas dentro da média (45,8%) das seis últimas eleições. Já o Senado mudou um terço da composição, com 22 eleitos e apenas cinco reconduzidos. Quase todos já estavam na política, em cargos públicos com ou sem mandato.
Lula venceu o primeiro turno amparado numa coligação de sete partidos. Somaram 28% da Câmara e 20% no Senado. Bolsonaro apoiou-se num trio (PL, PP e Republicanos) cujo desempenho superou as próprias expectativas, com 37% dos deputados e 31% dos senadores. É possível fazer muita coisa com o controle de um terço dos votos, mas não se muda a Constituição sem ampla maioria (60% dos votos, em dois turnos).
O número de partidos foi reduzido à metade, com sobreviventes ainda mais fragmentados. Bancadas do boi, da bala ou da Bíblia já se provaram disfuncionais, salvo na apropriação de fatias do Orçamento, via crédito estatal ou isenções tributárias.
O presidente eleito será refém da negociação de maiorias efêmeras e desorganizadas com um grupo partidário (PSD, União Brasil, MDB, PSDB e Cidadania), dono de um terço dos votos na Câmara e pouco mais (44%) no Senado. Esse bloco de centro vai ser determinante na diferença entre as promessas de campanha e a realidade do próximo governo.
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Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811