Desenha-se um desfile inédito no Supremo Tribunal Federal. À frente viria um ex-presidente, já condenado por crime político. Na sequência, um séquito militar de meia dezena de generais aposentados, uma dúzia de coronéis e oficiais de baixa patente, alguns na ativa. Na ala civil estariam políticos e advogados colaboradores, empresários patrocinadores, policiais e gente que fez do ativismo radical um meio de vida.
É um vislumbre do possível desfecho dos inquéritos sobre um plano de golpe de Estado, com tentativa de triplo homicídio, em benefício de Jair Bolsonaro, candidato presidencial do Partido Liberal, derrotado em 2022.
Se vai ser assim, nem os juízes do Supremo sabem. Sobram dúvidas porque, como dizia Martín Fierro, personagem do escritor argentino José Hernández, a lei é como faca — não corta a mão de quem a segura. Mas se tudo acabar em samba, ou em pizza, é previsível um avanço no estado de liquefação que já caracteriza a paisagem política brasileira.
O caso narrado pela Polícia Federal, avalizado pela Procuradoria-Geral da República e aceito pelo juiz Alexandre de Moraes, do STF, começa em 2019 com Bolsonaro subindo a rampa do Palácio do Planalto a bordo de um projeto ambíguo de poder, mas evidente no encanto nostálgico com um regime autoritário e militarizado.
Ele não viveu o golpe de 1964, nem a ditadura. Virou cadete em 1977, ano em que o general-presidente Ernesto Geisel liquidou ilusões armadas de oficiais como Sylvio Frota, chefe do Exército, e ordenou a retirada “lenta, segura e gradual” das Forças Armadas da cena política, para estancar a sangria provocada pela quebra de hierarquia nos porões dos quartéis.
Bolsonaro não iniciou a erosão institucional, mas foi ao limite na disposição de acelerar esse processo com a militarização do governo, a escolha do Supremo como alvo e ao arrendar o Partido Liberal. Entregou a Valdemar Costa Neto, reconhecido dono do PL, um banco regional (Nordeste), um fundo bilionário (FNDE), áreas-chave na governança de meio ambiente (Ibama), a política fundiária (Incra), infraestrutura (DNIT), saúde e saneamento (Funasa) e fatias do orçamento público no manejo de emendas parlamentares.
“Mais rico e maior partido do Congresso, PL virou instrumento de tentativa de golpe”
Da parceria Bolsonaro-Costa Neto, financiada com dinheiro público, resultou uma eficiente máquina eleitoral para os grupos de extrema direita, agregados no saudosismo autoritário e na sedução do golpismo para retomada do poder diante da derrota eleitoral, como aconteceu.
Com 1 bilhão de reais em verbas públicas, no ano passado, e dono da maior bancada no Congresso, o Partido Liberal está exposto nos inquéritos sobre a arquitetura de um plano de golpe de Estado, com tentativa de triplo homicídio — dos adversários eleitos, Lula e Geraldo Alckmin, e do juiz Moraes, do Supremo. Foi transformado em biombo eleitoral do golpismo. A manobra de Costa Neto ao pedir recontagem de votos disseminando suspeita de fraude na eleição, 22 dias depois da derrota de Bolsonaro, foi agora classificada pela polícia e pela procuradoria como “última etapa” de uma “estratégia” para “fundamentar a tentativa de execução do golpe de Estado que estava em curso”. O juiz Moraes rejeitou o pedido, em novembro de 2022, mas fez questão de registrar o objetivo de “incentivar movimentos criminosos e antidemocráticos, indicando para seus seguidores o esgotamento dos instrumentos legais para reversão do resultado, devendo-se adotar uma outra forma de ação mais contundente”.
É notável que, depois da eleição, o Partido Liberal tenha usado dinheiro público para remunerar alguns dos principais acusados nas investigações sobre crimes contra o regime democrático. Nos últimos dois anos, a folha salarial e a estrutura jurídica do PL sustentaram Jair Bolsonaro, os generais aposentados Walter Braga Netto e Mário Fernandes, o coronel Marcelo Câmara, entre outros personagens dos inquéritos sobre delitos constitucionais.
A opção do PL pela guinada à extrema direita deverá custar caro ao partido. Sua extinção, mais uma vez, será requerida. Já foi pelos adversários e deve ser indicada ao Supremo. São múltiplas as dificuldades jurídicas para a execução, até porque a lei é como faca e não corta a mão de quem a segura.
O primitivismo do plano para um golpe, que incluía assassinatos “com tiros ou envenenamento” dos adversários e até um “gabinete de crise”, com Heleno Pereira e Braga Netto no comando, tem muito pouco a ver com malícia política e mais com estupidez. Não elimina o principal: Sua Excelência, o fato.
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Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920