‘Lenda’ da direita, embaixador dos EUA era espião de Cuba
Durante 40 anos espionou para Cuba na América Latina e chegou ao Conselho de Segurança dos EUA: "Criaram a lenda de uma pessoa de direita"
No verão de vinte e um anos atrás, o Congresso da Bolívia cassou o mandato do então deputado Evo Morales, líder dos cocaleros (produtores de folha de coca). Era janeiro de 2002 e ele foi responsabilizado pela rebelião indígena contra a erradicação das plantações na província de Chapare, de onde sai a maior parte da matéria-prima da cocaína boliviana. Morreram quatro pessoas, entre elas um policial.
Morales decidiu se candidatar à presidência da República. Na semana da eleição, em agosto, ele não aparecia com mais do que 12% nas pesquisas.
Quatro dias antes da votação, o embaixador dos Estados Unidos na Bolívia, Victor Manuel Rocha, fez o inimaginável na diplomacia — interferiu na eleição. Anunciou que seu país não queria ver os bolivianos votando no líder cocaleiro. Disse a uma pequena plateia, sabendo que estava sendo gravado: “Como representante dos Estados Unidos, quero recordar ao eleitorado boliviano que se elegem a quem desejam, para fazer com que que a Bolívia volte a ser um importante exportador de cocaína, isto deixará em perigo o futuro da assistência à Bolívia”.
Rocha virou uma “lenda” na direita latino-americana. Morales viu a oportunidade e embalou a campanha em chavões anti-imperialistas. Só faltou prometer aos eleitores uma declaração de guerra aos EUA, num país com 60% vivendo na pobreza absoluta e acumulando frustrações econômicas com a erradicação das plantações de coca, patrocinada pelo governo norte-americano. Contados os votos, o líder cocalero passou ao segundo turno (com 20,9% do total) em disputa com o candidato liberal Gonzalo Sánchez de Lozada, que acabou vencedor.
Na época, alguns políticos de esquerda qualificaram o embaixador Rocha como “terrorista eleitoral”. Outros, com ironia, como “verdadeiro chefe da campanha” de Morales. Estavam certos: o líder indígena venceu a eleição presidencial seguinte, ficou no poder por 12 anos e já é candidato à próxima, em 2025. Sempre com a bandeira do anti-imperialismo dos EUA.
Nesta segunda-feira (4/12), o ex-embaixador Rocha esteve num tribunal de Miami. Foi acusado de espionagem para o governo de Cuba durante as últimas quatro décadas, como havia confessado em conversas com um agente do FBI disfarçado de “contato” cubano, todas gravadas clandestinamente em áudio e vídeo.
Rocha completou 73 anos. Nasceu colombiano numa família pobre que migrou para Nova York, obteve a cidadania, estudou nas universidades de Yale, Harvard e Georgetown e foi trabalhar no serviço diplomático. Fez carreira em postos relevantes na República Dominicana, em Cuba e na Argentina. Foi embaixador na Bolívia e, depois, ocupou uma vice-diretoria no Conselho de Segurança Nacional, órgão de assessoria da Casa Branca. É provável que passe o resto da vida numa cela, condenado por traição.
O espião cubano foi ludibriado, e se entregou. Michael Haley, agente especial, contou ao tribunal que em novembro do ano passado o FBI recebeu “informação anônima” sobre a dupla atividade do ex-embaixador. Montou-se uma armadilha: outro agente, disfarçado com o codinome “Miguel”, mandou-lhe um recado por WhatsApp: “Tenho uma mensagem para você de parte dos seus amigos em Havana. Trata-se de um assunto delicado”. Rocha respondeu: “Não entendo, mas pode me telefonar”.
Encontraram-se na manhã de quarta-feira 16 de novembro de 2022, em frente a um templo de estilo colonial no centro de Miami, construído depois da II Guerra por uma congregação presbiteriana. Ao ver Miguel, o ex-embaixador sugeriu que conversassem ali perto, numa praça de alimentação.
— Medida…de precaução. Sempre… Recebi treinamento suficiente para saber que você deve estar alerta…
Miguel, agente encoberto do FBI, disse estar trabalhando secretamente na cidade e que havia sido orientado a se apresentar a como “novo contato” para combinar um “plano de comunicação”. Rocha mordeu a isca. Concordou, e iniciou uma longa conversa sobre a sua atividade como espião da Dirección General de Inteligencia, para estrangeiros DGI cubana, para os mais íntimos “la Dirección”. Até pediu que Miguel agradecesse “aos companheiros”, e contou sobre o seu último contato direto com a Dirección:
— [Pude viajar] … para a capital e lá tive uma longa reunião …
Miguel — [Em] Havana.
Rocha: — Temos outro nome. Nunca utilizamos Havana… Costumo dizer ‘A Ilha’. … Eu nunca uso “C” ou “H” … “Desde que a “Dirección” me pediu… para levar uma vida normal… Criaram a lenda de uma pessoa de direita. Eu sei, através de meu treinamento e experiência, que uma lenda é o pano de fundo artificial de um agente ou uma característica de sua biografia usada para manter sua identidade secreta.
Lembrou que esse era seu “primeiro contato” desde a sua “última viagem” a Havana, via Panamá, “em 2016 ou 2017″.
Rocha: [do] Panamá, fui para… quero dizer, entrei como dominicano [com passaporte da República Dominicana] … Eu sempre disse a mim mesmo: “A única coisa que pode colocar em perigo tudo o que fizemos é, é… a traição de alguém”, alguém que pode ter me conhecido, alguém que pode ter sabido de algo em algum momento.
Continuou: — A minha preocupação número um, a minha prioridade número um era … qualquer ação por parte de Washington que pudesse… [ou] colocaria em perigo a vida de… da liderança, ou da própria revolução… Foram décadas, décadas. Quer dizer, décadas de profundo…
Miguel: — Quantos anos?
Rocha: — Quase 40.
Miguel: — Uau…
Rocha: — Ah, de muito perigo. Ah …Eles devem ter te contado algo porque você mencionou o Chile [poucos sabiam onde Rocha havia morado por volta de 1973, época do golpe de estado estimulado pelos EUA e pelo Brasil contra o governo constitucional de Salvador Allende] … Isso inspirou confiança em mim … Eu tenho que contar a você uma coisa.
Miguel: — Diga-me.
Rocha: — Ah, dá muito…orgulho e satisfação ver isso, que as pessoas gostam, Miguel, que são muito mais jovens, mas…
Miguel: — Obrigado.
Rocha: — … Mas estamos lutando. E isso não é fácil.
Miguel: — Obrigado pela amizade e ajuda de tantos anos. Certo? Muito obrigado.
Rocha: — Claro, não tem problema… Isso é um sacrifício enorme… enorme. Com muita tensão que você tem que administrar internamente… com autodisciplina .. . o tempo todo. Quando você tem convicção, você tem autodisciplina…
O ex-embaixador passou a explicar ao agente do FBI disfarçado como via o resultado do próprio trabalho de espionagem:
— O que foi feito, fortaleceu a Revolução. Fortaleceu-a imensamente… [Nós] não podemos colocar, colocar isso em perigo. Sou muito zeloso em relação ao que fizemos e com o que, eu tenho que proteger, e o que copiamos. Tenho que proteger o que fizemos, porque o que fizemos, porque o que fizemos foi… o cimento que fortaleceu nos últimos 40 anos. Quer dizer, esse cimento é concreto… Você sabe?… Eu não colocaria em perigo o que temos em cópia… porque… eles reagiriam fortemente contra a Revolução… fortemente pelo fato de que através da minha participação nós, nós fizemos o que fizemos… Eles subestimaram o que poderíamos fazer com eles. Fizemos mais do que eles pensavam…
Miguel: — A “Dirección” sabe o que Rocha fez.
Prosseguiu — O que temos copiado… é enorme… Mais do que um grande golpe.
Encontraram-se mais duas vezes nos sete meses seguintes. A última foi na quinta-feira 23 de junho deste ano. Mesmo local, a praça de alimentação ao redor do templo presbiteriano, no centro de Miami.
Miguel, de novo, provocou Rocha: — A “Dirección” quer garantir que você ainda é um companheiro nosso… Você ainda está conosco?
Na hora, o ex-embaixador desconversou. Pouco depois, retrucou: — Estou com raiva. Estou chateado… Por causa da pergunta que foi feita… É isso, isso… É como questionar minha masculinidade… É como se você quisesse que eu os largasse… e mostrasse a você se eu ainda tenho culhões.
Prometeu a Miguel que, se houvesse uma investigação, saberia “como lidar com ela”.
— Sei me defender… Tenho a inteligência e tenho o conhecimento… Quero dizer… no desempenho de minhas funções, quantas vezes já me reuni com… com eles, para responder perguntas… Eu sei como funciona o sistema.
Completou: — Nunca em 40 anos coloquei um companheiro em perigo. Sejam nossos, sejam os russos… Então, quem está numa missão não vê o outro em outra. É simplesmente um não, porque põe tudo em risco… Eu protejo, eu protejo tudo o que foi feito. Eu sempre protegi e irei proteger e sei como proteger.
Durante 40 anos, o espião se resguardou de tudo e de todos. Esqueceu de se proteger da própria vaidade.