Impasse
Lula achou estatal nuclear 'estratégica'. Impediu a privatização, agora não sabe o que fazer

Meio século depois, o Brasil segue sem saber o que fazer com o seu programa de energia nuclear. Semana passada, o governo anunciou uma nova “atualização” de estudos sobre a usina Angra 3, no interior do estado do Rio. É a terceira vez que isso acontece em três anos. No Palácio do Planalto preserva-se a memória de mais de vinte reuniões nos últimos doze meses. Sem conclusão.
Angra 3 se destaca entre as mais antigas obras públicas paralisadas. É um imenso buraco com estruturas semiconcluídas num canteiro repleto de maquinário antigo e armazéns fechados. Compõe um retrato da inércia, de abandono e desperdício de 20 bilhões de reais em meio à bela paisagem litorânea de Angra dos Reis.
É símbolo decadente de uma aventura megalômana iniciada na ditadura do general Ernesto Geisel, em meados dos anos 70, sob justificativas grandiloquentes como a da necessidade de afirmação da soberania nacional. O projeto original previa outras sete usinas e um parque industrial para, supostamente, receber tecnologia alemã.
O fracasso já custou ao país meio trilhão de reais, ou uma centena de bilhões de dólares. Criou um impasse que nove presidentes não resolveram e continua insolúvel no terceiro mandato de Lula. O programa nuclear agoniza, mas não morre. Sobrevive como alegoria da afeição entre políticos e empreiteiros, aditivada no Orçamento federal.
O governo vagueia. Manter o buraco aberto e o esqueleto de Angra 3 como está pode ser politicamente conveniente, como tem sido há décadas, mas custa caro: 100 milhões de reais por ano apenas para guardar equipamentos comprados da Alemanha (meses atrás chegaram novas peças e componentes embarcados depois do pagamento de 5 bilhões de reais). Para terminar a usina será preciso gastar mais 17 bilhões de reais, quase duplicando o custo final da obra. E ninguém no governo sabe dizer qual seria a tarifa de energia necessária para pagar o investimento.
Na paisagem do programa nuclear se destaca, também, a Nuclebrás Equipamentos Pesados (Nuclep). É parte essencial desse monumento ao delírio político que perdura há meio século. É uma indústria de dimensões colossais em Itaguaí (RJ), com especialidade tecnológica incomum.
“Lula achou estatal nuclear ‘estratégica’. Impediu a privatização, agora não sabe o que fazer”
Foi projetada para produzir componentes pesados necessários à montagem de uma usina nuclear por ano, como Angra 3. No entanto, as encomendas que recebeu no ano passado ocuparam apenas 2,8% da sua capacidade de processamento de aço para o setor nuclear — o negócio que justifica a existência dessa empresa estatal. Sem opção, passou a produzir estacas metálicas para empresas de petróleo e gás e torres de transmissão de energia elétrica.
A Nuclep já custou 14 bilhões de reais aos cofres públicos nas últimas duas décadas. Sobrevive da extração de 450 milhões de reais por ano do Orçamento federal e, por mais estranho que pareça, opera como se fosse um departamento do Ministério de Minas e Energia. Ela ainda usa o sistema de controle e acompanhamento do Orçamento da União, conhecido como Siafi, para gerenciar suas decisões na produção de peças e componentes.
Parou no tempo, mostram auditores do Tribunal de Contas da União que, no mês passado, relataram “situações muito semelhantes” às que haviam encontrado décadas atrás durante fiscalização na Nuclep: “Não possui, na prática, visão gerencial dos seus custos; registros dos resultados de suas operações confiáveis, tempestivos e acessíveis; salvaguarda dos conhecimentos técnicos e diferenciais competitivos adquiridos ao longo dos anos; e tampouco está apta a validar as margens de contribuição efetivamente alcançadas em cada projeto. Essa realidade prejudica a tomada de decisões gerenciais”.
Nuclep e Angra 3 são fotografias dos prejuízos provocados pela inércia de políticos de diferentes gerações e posições ideológicas que governaram o país nos últimos cinquenta anos. É espécie de crime coletivo continuado, em que a culpa é difusa. Segundo o TCU, “não é possível individualizar a conduta e responsabilizar nenhum agente público”.
Em 2023, uma das primeiras decisões de Lula foi retirar meia dúzia de empresas estatais do programa de privatizações, todas qualificadas como “estratégicas” aos interesses nacionais. A sequência recente de movimentos erráticos sobre a Nuclep e Angra 3 confirma: Lula não sabe o que fazer com o programa nuclear.
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Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965