Em pé, com água barrenta acima das meias e livro aberto nas mãos, o gaúcho Mario Quintana parecia recitar sua Conversa Bem Brasileira à fotógrafa que se aproximara num barco: “Desculpe, minha senhora, mas não consigo lembrar-me se a conheço do último Carnaval, da última greve, ou da última enchente…”.
Ao lado, sentado no banco da praça, pernas cruzadas e canelas submersas, o mineiro Carlos Drummond de Andrade olhava, distraído do rio de enchente que já ameaçava os joelhos, talvez lembrando o dia diluviano em Ouro Preto (MG), 2 000 quilômetros ao norte, quando escreveu: “… E ruindo se vai a porta. Só a chuva monorrítmica sobre a noite, sobre a história goteja. Morrem as casas…”.
Os poetas ficaram ilhados num encontro de ficção moldado em bronze, o Monumento à Literatura, no alagado centro histórico de Porto Alegre, capital da quarta economia de um país onde as mudanças climáticas ameaçam transformar governantes, atuais gerentes do atraso, em futuros síndicos de catástrofes.
É a terceira devastação do Rio Grande do Sul por enchentes em oito meses — ainda há pessoas desaparecidas na última, em novembro. Isso depois de um biênio de perdas e danos por severa estiagem.
Os gaúchos formaram uma sociedade que se distingue no mapa brasileiro pela qualidade de vida em padrão superior ao da maioria das regiões. Domaram uma fatia da planície mais fértil da América do Sul, interconectada por rios navegáveis, driblando a voracidade da Argentina pelo domínio geopolítico da Bacia do Prata. Com laivos de autonomia e independência do governo federal, atravessaram os primeiros 130 anos da República aumentando a eficiência econômica e a acumulação de capital na região, com fluidez na administração pública. Consolidaram um histórico de taxas de desigualdade de renda e riqueza menores, em média, na comparação nacional.
“Rio Grande do Sul deixa o país atônito por espelhar as debilidades nacionais”
Com mais de dois terços do território atingido, o Rio Grande do Sul deixa o país atônito por espelhar as debilidades nacionais, agravadas nas últimas cinco décadas de estagnação social e econômica, desleixo ambiental e com evidente declínio na qualidade da representação política.
A infraestrutura defasada e deficiente, não necessariamente nessa ordem, virou ruína. O estado recuou na industrialização e asfixia-se numa reduzida participação (cerca de 6%) na produção industrial nacional. Aderiu à preferência política de Brasília por aumentar a dependência das exportações de matérias-primas agrícolas — a soja dos campos hoje alagados é responsável por mais da metade do comércio exterior. Desidratou a legislação ambiental, inovadora nos anos 70, para estimular a expansão da monocultura da soja (6 milhões de hectares) e o reflorestamento com eucalipto (1 milhão de hectares). Nas terras baixas, planas e férteis do pampa (63% do território estadual), a vegetação nativa é residual.
Como exportação de matéria-prima agrícola quase não paga imposto, as finanças públicas foram arrasadas. Há quatro décadas, a deficitária administração estadual sobrevive de gambiarras financeiras. Endividada, vende o almoço para pagar “a janta”. Débil na capacidade de planejar e investir, o Rio Grande do Sul patina no intervalo das calamidades.
O rio de enchente subiu às mais altas janelas em oito de cada dez cidades gaúchas. Quando a água baixar, talvez em um mês, será possível dimensionar o estrago. Eduardo Leite, governador gaúcho eleito pelo PSDB, reivindica um plano de reconstrução financiado pelo Tesouro Nacional. É uma forma de lembrar que os 11 milhões de gaúchos pagam em tributos federais quatro vezes mais do que recebem da União. Para eles, é hora de discutir a relação.
Talvez seja excesso de otimismo enxergar no redemoinho do Rio Grande do Sul uma oportunidade para mudanças no rumo do país. Isso porque dependeria da competência política o resgate de um Brasil há décadas aprisionado na economia de baixa geração de capital e alto custo do dinheiro — roteiro oposto ao da maioria dos centros de poder econômico no mundo. Mas, como escreveu o agora inundado poeta Mario Quintana, enquanto o poema não termina, a rima é como uma esperança.
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Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892