A guinada radical dos Estados Unidos na eleição de Donald Trump ao segundo mandato enterra uma era de capitalismo liberal liderada por Washington a partir do fim da Segunda Guerra. No novo mundo já esboçado por Trump as instituições democráticas estão debilitadas, a Suprema Corte magnetizada e o Senado tem maioria sob controle do presidente. Ele anuncia fronteiras fechadas e guerra econômica contínua, a partir de janeiro.
A tensão vai aumentar. É certeza predominante tanto nos escritórios empresariais de São Paulo quanto nos gabinetes burocráticos da Esplanada dos Ministérios, separados por 1 500 quilômetros. Prevê-se mais quatro anos, no mínimo, de hostilidades crescentes entre Estados Unidos e China, com recrudescimento do protecionismo econômico.
É um cenário tóxico onde se destacam as vulnerabilidades de nações como o Brasil, cujos governos, desde a virada do milênio, tentam se equilibrar entre ambiguidades com Washington — às vezes, hostilidades gratuitas — e dependência econômica da China.
Por escolha política, o país voltou a viver do comércio de matérias-primas, como na primeira metade do século passado. Nessa viagem de regresso, desdenhou da transformação tecnológica da indústria e não educou a força de trabalho para a transição digital. Tornou-se um jogador relevante no mercado mundial de insumos básicos, mas sem poder real de mitigar ou de influenciar para reverter decisões que atinjam os seus interesses.
É eloquente o filme do desempenho recente do comércio brasileiro. Na última década (2013-2023) o valor das exportações caiu continuamente durante sete anos, com perdas de produção e de empregos qualificados. Avançou no ciclo da pandemia (2020-2021), estagnou na sequência e segue em declínio. A receita prevista para 2024 é de 328 bilhões de dólares, informa a associação dos exportadores. Será uma redução de 3,5% em relação às vendas do ano passado.
As fragilidades ganham realce no cenário de riscos sob Trump. O Brasil concentra (62%) do total das suas vendas ao exterior em apenas três produtos — soja, minério de ferro e petróleo. Esse trio de mercadorias também compõe a maior parte (77%) das exportações para a China.
“O Brasil está vulnerável no novo mundo que Trump desenha na volta ao poder”
Houve um significativo aumento na dependência brasileira de Pequim na última década: o mercado chinês era destino de 17% do comércio exterior; agora beira 34%. Alguns estados, como Rondônia e Piauí, dependem dos consumidores chineses para sustentar mais de um terço da sua atividade econômica.
Já os Estados Unidos são os principais clientes da indústria brasileira. A receita das vendas aos EUA representa uma fração, cerca de um terço, das exportações à China, mas é vital para os produtos industrializados das regiões Sul e Sudeste. A diferença na dependência econômica dos EUA e da União Europeia, em comparação com a China, está no domínio do capital americano e europeu em investimentos no Brasil.
O retorno de Trump à Casa Branca, a bordo de uma vitória eleitoral expressiva, deixa o Brasil numa situação complexa. Está vulnerável à nova onda de protecionismo, com reflexos diretos nas economias da China e da Europa, no aumento de preços dos bens importados pelos EUA e na valorização do dólar.
É previsível, ainda, que o país terá um custo extra, derivado da diplomacia de microfone adotada por Lula. Quando os americanos estavam indo às urnas, ele resolveu desqualificar o candidato republicano: “É o fascismo e o nazismo voltando a funcionar, sabe, com outra cara”, disse em entrevista ao repórter Darius Rochebin, de um canal francês de televisão. Em seguida, declarou sua “torcida” pela adversária democrata, Kamala Harris. Num paralelo, repetiu Jair Bolsonaro, que, quatro anos atrás, hostilizou publicamente o então candidato Joe Biden.
Lula já havia feito coisa parecida no ano passado durante a disputa eleitoral na Argentina. Na época, hostilizou o então candidato da extrema direita, Javier Milei. Até usou uma reunião com banqueiros em Paris para atacar o ex-presidente Mauricio Macri, que apoiava Milei. Acusou-o — sem provas — de corrupção num empréstimo de 40 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional (FMI) à Argentina. Foi além: mobilizou o governo, o Partido dos Trabalhadores e assessores no apoio ao candidato peronista Sergio Massa. Perdeu, com Massa, para Milei. Empurrou a Argentina para os braços da Casa Branca.
Preferências pessoais são naturais. Na Presidência da República, porém, manifestações do gênero ganham dimensão institucional. Lula pode ser acusado de tudo, menos de ingenuidade. Ele sabe que, adiante, essa fatura será paga por todos os brasileiros.
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Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918