Falta alguém no relatório policial sobre o golpe: quem pagou a conta?
Houve, sim, um grupo de empresários simpático ao desvario golpista. No relatório da Polícia Federal nada consta. Os inquéritos, porém, seguem abertos
Há lacunas no relatório sobre o desvario golpista de Jair Bolsonaro, cujas sequelas devem permanecer por longo tempo na vida política do país.
A Polícia Federal demonstrou competência ao retratar com depoimentos e farta documentação a tentativa frustrada de golpe de estado com um plano de triplo assassinato. Mas restaram espaços não preenchidos no “resumo” de 884 páginas enviado ao Supremo Tribunal Federal. Um exemplo: quem pagou a conta?
A polícia dedicou um capítulo (“Da relação com financiadores das manifestações’’) à coleta de dinheiro e materiais no Mato Grosso do Sul. Destacou um agente público, Aparecido Andrade Portela, imposto por Bolsonaro na suplência do Senado pelo Partido Liberal – ele é adversário da senadora eleita pelo Progressistas, Tereza Cristina, ex-ministra da Agricultura.
Tenente Portela, como é conhecido, serviu com Bolsonaro no final dos anos 1970 no Grupo de Artilharia de Campanha em Nioaque (MS), região de fronteira com o Paraguai. No livro “O cadete e o capitão”, Luiz Maklouf relata que Bolsonaro trocou o Rio por Nioaque “por vontade própria”, segundo documentos do Exército, e desenvolveu atividades paralelas e proibidas na vida militar: arrendou terras, plantou melancias e atuou no comércio de fronteira.
A polícia registra contatos frequentes entre Portela e Bolsonaro, mas não menciona nomes de financiadores nem valores, mas ressalva ter realizado a “identificação de novos investigados”. Fica claro, no relatório, que empresários apostaram dinheiro em Bolsonaro na expectativa de “consumação do ato de ruptura institucional”.
Até a segunda-feira 26 de dezembro de 2022, eles cobravam Portela sobre o golpe. Então, enviou mensagem ao ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid: “Estão me cobrando se vai ser feito mesmo…” O ajudante de ordens da presidência respondeu: “Vai sim. Ponto de honra. Nada está acabado ainda da nossa parte”. E, segundo a polícia, se ofereceu para ajudar Portela: ‘‘Se quiser eu falo com eles…para tirar da sua conta…’’
Uma das peculiaridades da trama em que se enredou Bolsonaro é a rarefeita adesão da elite empresarial. Até onde as investigações indicam foi escasso o engajamento de empresários. Ampla maioria do setor privado se manteve à distância da radioatividade golpista. Empresas relevantes nos segmentos econômicos de grande concentração de capital — finanças, agronegócio, mineração e comércio — foram além: decidiram ficar na contramão; financiaram, subscreveram e divulgaram manifestos públicos em defesa do regime democrático.
Mas houve, sim, um grupo de empresários simpático ao desvario golpista. Alguns de São Paulo, Minas e do Centro-Oeste, por exemplo, se destacaram no apoio aberto com recursos financeiros e materiais. No relatório da Polícia Federal nada consta. Os inquéritos, porém, seguem abertos.