Lula acha que o Brasil “deve desculpas e reparação” a Dilma Rousseff — e a ele também, claro. Por isso, incentivou o Partido dos Trabalhadores a apresentar um projeto para anular o impeachment da ex-presidente ocorrido num inverno político de sete anos atrás.
Enredos de ficção com laivos de autenticidade têm animado a biografia de Lula, de Dilma e o histórico do Partido dos Trabalhadores.
Não é jabuticaba petista. Rituais de culto à personalidade são característicos de núcleos autoproclamados de esquerda ou de direita, que têm densidade eleitoral, mas celebram a própria aversão à modernidade, seja na renovação de ideias ou de lideranças.
Essa diluição de identidades políticas tem se refletido nas urnas. Ano passado, Lula venceu Bolsonaro por uma fração de 1,8 ponto percentual — diferença de 2 milhões de votos entre 118,5 milhões válidos. Em Minas Gerais saiu do primeiro turno com dianteira de 560 000 votos. Três semanas depois, obteve apenas 49 000 votos à frente no eleitorado mineiro.
“Sua excelência, o fato”, na ironia de Ulysses Guimarães, tem o péssimo hábito de atrapalhar a vida dos construtores de mitologias políticas. Lula não admite, por exemplo, a corrupção sistematizada nos seus mandatos da década passada. Costuma atribuir o enriquecimento de aliados políticos e empresariais no mensalão e no petrolão a uma suposta conspirata imperialista.
Quando os fatos não servem, criam-se outros. Geralmente com narrativas fantásticas e simbólicas, onde os erros próprios são atribuídos a outros ou a entidades quase sobrenaturais — forças ocultas.
A versão de Lula para o mensalão e o petrolão acabou disseminada no Partido dos Trabalhadores. Ganhou retoques delirantes de alguns petistas, entre eles Henrique Pizzolato, ex-diretor no Banco do Brasil a serviço do PT e peça-chave no tráfego de dinheiro para compra de apoio ao governo no Congresso, no período 2004-2005. Como o líder, ele culpa os Estados Unidos por suas agruras em 1 530 dias de sentença por corrupção: “O Lula era a última barreira para que eles tomassem conta da energia fóssil, da energia hídrica, das nossas riquezas”, comentou com o repórter Leonardo Caldas, de VEJA.
“Os fatos insistem em atrapalhar a construção de mitos na política”
O problema com os fatos é que eles não deixam de existir, mesmo quando ignorados. Bolsonaro atravessou metade do mandato desacreditando a Covid-19 — “uma gripezinha”, dizia. Nos cemitérios de Norte a Sul, no entanto, estão visíveis as sepulturas das 700 000 vítimas do seu desgoverno pandêmico.
Noutro exemplo, não há como abstrair as digitais de Dilma em delitos previstos na legislação sobre responsabilidade fiscal. Elas estão na assinatura de três decretos de créditos suplementares, editados sem autorização do Congresso. E se espalham, também, em operações que o Congresso considerou irregulares entre o Tesouro e bancos públicos no financiamento de programas sociais.
Há quem considere injusto o impeachment de Dilma, em 2016. Da mesma forma, existem os que acham iníqua a deposição de Fernando Collor, em 1992, em campanha liderada por Lula e organizada pelo PT. Ambos foram submetidos a julgamento político no Senado, como previsto na Constituição e sob supervisão do Supremo Tribunal Federal. Ela teve uma ação judicial extinta, sem análise do mérito. Ele foi absolvido pelo STF, em 1994, das acusações de corrupção na Presidência.
Por ironia, em junho Collor foi sentenciado a oito anos e dez meses de prisão por crimes cometidos no mandato de senador, entre 2009 e 2014, quando Lula e Dilma Rousseff trocaram seu apoio no Senado pelo controle de uma fatia dos contratos da Petrobras na construção de bases de distribuição de combustível na Amazônia e na Baixada Fluminense.
Histórias falsificadas, com frequência, são armas usadas na luta política por quem acredita que, controlando o passado, terá mais facilidade em dominar o presente. O problema recorrente na contra-história elaborada com heróis e tragédias são os fatos. E eles estão aí, relatados em obras como O que Vi dos Presidentes, de Cristiana Lôbo em parceria com Diana Fernandes, e em séries documentais como Collor versus Collor, baseada em livro de Dora Kramer. É a melhor vacina contra falsificações da história.
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Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857