O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão federal responsável pela promoção da concorrência entre empresas, mantém sistemas de espionagem eletrônica capazes de invadir, decodificar e extrair arquivos mantidos ou já deletados em telefones, computadores e aplicativos como Facebook, Twitter, Instagram, Google, iCloud, WhatsApp e LinkedIn, como também o histórico de navegadores da internet, vídeos, documentos e dados de localização.
Esses equipamentos são usados, também, por Secretarias da Fazenda, em Minas Gerais e Goiás, pela Polícia Militar, em todos os estados. E, ainda, pela Polícia Rodoviária Federal, Agência Brasileira de Inteligência e órgãos da burocracia do Ministério da Justiça. Em São Paulo, por exemplo, a Corregedoria da Polícia Militar mantém softwares para coleta ilimitada de dados nos aparelhos pessoais de policiais sem deixar rastros. É tudo à margem da lei, na clandestinidade, porque quase todos esses órgãos públicos não possuem autoridade legal para realizar investigações criminais.
A vigilância governamental se tornou onipresente. O Estado espião já é parte da paisagem política brasileira, como ficou demonstrado na semana passada em audiências públicas do Supremo Tribunal Federal, convocadas sob a justificativa de “violação sistemática de preceitos fundamentais no uso de tais equipamentos para monitorar magistrados, advogados, jornalistas, políticos e defensores de direitos humanos”.
Organizações independentes apresentaram ao tribunal um panorama dessa rede ilegal patrocinada por governos, em Brasília e nas capitais. Há indícios de manipulação de orçamentos federais e estaduais na expansão de um arsenal de ferramentas contra as quais não existe segurança para informações individuais nem proteção aos direitos privados. Sem regulação e supervisão efetivas, governos estimulam grandes negócios na espionagem política e econômica — e tudo pago com dinheiro público.
O Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife apresentou ao juiz Cristiano Zanin, do STF, amostra de 209 contratos públicos federais e estaduais, feitos em 2022, para compra de máquinas e licenciamento de programas utilizáveis exclusivamente em ações de rastreamento, invasão, extração e decodificação de criptografia de “evidências” digitais, onde quer que estejam.
“Debate no STF expôs uma rede nacional, e ilegal, de espionagem”
É um mercado em crescimento, com movimento anual superior a 10 milhões de dólares (ou 55 milhões de reais). Dois terços das compras têm sido feitas pelas Forças Armadas, governos de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Amapá. Dois revendedores brasileiros, Techbiz Forense Digital e a Apura Comércio de Softwares, costumam oferecer duas dezenas de “soluções digitais” aos órgãos públicos, importadas de fornecedores como Cellebrite, Verint, Micro Systemation AB, OpenText, Magnet Forensics e Exterro, entre outras.
As empresas israelenses, Cellebrite e Verint concentram 80% das compras governamentais desse tipo de ferramenta intrusiva. Elas têm um histórico de envolvimento em escândalos de vigilância estatal abusiva no exterior — existem registros de casos nos quais as vítimas acabaram presas, torturadas e assassinadas. Alguns softwares são capazes de ativar microfones remotamente, identificar a localização e rastrear até 19 000 pessoas — alvos no dialeto policialesco —, como faz o programa FirstMile.
Indícios de uso abusivo do FirstMile durante o governo Jair Bolsonaro motivaram a abertura de processo no Supremo Tribunal Federal, que derivou nas audiências públicas da semana passada. A Abin teria rastreado ilegalmente as comunicações de aliados e adversários políticos, jornalistas e juízes do STF. Só no Rio, a agência gastou quase 6 milhões de reais numa ação sigilosa em áreas suburbanas (“Operação 06”), controladas por milícias de policiais e de narcotraficantes, às vésperas da eleição municipal de 2020.
A Procuradoria-Geral da República recorreu ao Supremo com o pedido de repressão imediata ao uso “secreto e abusivo desses softwares e ferramentas, sem autorização judicial, tampouco limites ou salvaguardas, de forma contrária à tutela do interesse público e aos deveres de proteção dos direitos fundamentais, que se impõem em um Estado de direito”. Pretende, também, que o tribunal estabeleça prazo para o Congresso produzir legislação específica. O governo Lula discordou. Entende que está tudo bem e as leis existentes são adequadas. No STF, propôs desenvolver, com subsídios, uma indústria doméstica de equipamentos e softwares para abastecer o sistema de espionagem nacional.
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Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897