Dura reação social à homenagem de Lula ao ditador Maduro
Ongs cobram respeito às vítimas da repressão e pressionam Tribunal Penal Internacional a avançar na investigação de Maduro por crimes contra a humanidade
Lula escolheu distinguir, homenagear e cortejar o ditador venezuelano Nicolás Maduro entre a dezena de governantes eleitos da América do Sul que convidou para uma reunião, hoje em Brasília.
“Momento histórico”, qualificou, ao indicar o resgate de uma “política externa séria”. Acrescentou: “Tenho ido a países que nem sabem onde fica a Venezuela, mas dizem que a Venezuela tem uma ditadura. Eu sei muito bem a narrativa que construíram contra a Venezuela durante esses anos. Maduro, vocês têm que desconstruir essa narrativa.”
No realismo mágico de Lula, ditadura de Maduro é mera versão, invencionice esculpida pelo “preconceito” nos Estados Unidos e na Europa, visível em “900 sanções” econômicas, para ele responsáveis pela catástrofe humanitária venezuelana.
Preferiu abstrair o desastre que começou no Palácio Miraflores, em Caracas, no governo do coronel Hugo Chávez, na época admirado tanto por ele quanto pelo então deputado federal Jair Bolsonaro.
Chávez morreu em março de 2013, e deixou um país com a moeda (bolívar) desvalorizada em nada menos que 992%. Maduro assumiu como “presidente encarregado” e conduziu 80% da população às estatísticas de pobreza, fez a inflação superar 400% ao ano e provocou êxodo de 5 milhões na última década.
Lula sabe o que é uma ditadura. Tem todo o direito de apreciar governantes autoritários que, de alguma forma, retribuíram objetivamente a sua afeição, como foi o caso de Maduro, Chávez, Vladimir Putin, Mahmoud Ahmadinejad, Teodoro Obiang ou Muammar Kadafi, entre outros.
O problema é que no século XXI já não consegue reluzir na vitrine política com enredos negacionistas. A reação social ao elogio da ditadura Maduro foi imediata e dura.
Organizações de defesa dos direitos humanos responderam com vigor. Foi o caso da Human Rights Watch (HRW): “Como no caso da Ucrânia, Lula deveria entender que, se quer que o Brasil tenha um papel de liderança diante da Venezuela, deve começar por um diagnóstico acertado — e não falseado — da realidade. O autoritarismo na Venezuela não é uma ‘narrativa construída’. É uma realidade inquestionável.”
Em comunicado, a venezuelana Provea, de educação em direitos humanos, lembrou a Lula que, neste ano, cerca de 8.900 vítimas da repressão cobraram do Tribunal Penal Internacional celeridade na investigação de Maduro por crimes contra a humanidade.
Parte dessas pessoas são sobreviventes das salas de tortura que o Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin) mantém em sua sede no monumental Helicoide, antigo shopping center de Caracas, desenhado em espiral e construído no boom petroleiro dos anos 50. A Provea catalogou e apresentou ao TPI milhares de denúncias. “Não é uma ‘narrativa construída’, é parte de um plano sistemático contra a população civil e dissidente, já alertado pela ONU”, protestou, acrescentando: “Pedimos respeito a todas as vítimas, que merecem justiça e reparação que o Estado venezuelano não dá”.
Misturar preferências pessoais com interesses de Estado costuma custar caro. Há exatos 14 anos, na terça-feira 26 de maio de 2009, Lula assinou uma “carta de intenções” com o coronel-presidente Hugo Chávez garantindo financiamento das exportações de bens e serviços para obras consideradas prioritárias pelo governo venezuelano.
Lula preparava a sucessão, com Dilma Rousseff, amparado na generosidade de empreiteiras amigas. Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez foram regularmente financiadas pelo BNDES. A Odebrecht levou 75% e todos os riscos de calote ficaram para o Tesouro Nacional.
Foram 1,6 bilhão de dólares em crédito ao governo Chávez, segundo a calculadora do Tribunal de Contas da União — equivalentes a 8,2 bilhões de reais no câmbio atual.
Nove anos depois, na quinta-feira 2 de fevereiro de 2018, o Congresso correu para aprovar um “crédito suplementar” para cobrir o primeiro bilhão de reais da dívida que a Venezuela não pagou e o Tesouro avalizou. O prejuízo do acordo Lula-Chávez, ampliado com Maduro, há década e meia está sendo “socializado” entre os brasileiros.
Ontem (29), a repórter Delis Ortiz perguntou a Lula e Maduro qual é o tamanho atual da dívida da Venezuela, crescente porque também deixou de pagar outros fornecedores brasileiros nesse período.
Ambos sorriram, mas não quiseram ou não souberam responder. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, anunciou que em breve será criado “um grupo de trabalho” para somar — “consolidar”, nas suas palavras — e, em seguida, “reprogramar”, o que significa aumentar o tempo, e a esperança, de pagamento.
Lula quer usar a reunião de cúpula desta terça-feira (30) para tentar avançar na reabilitação política de Maduro, também processado por narcotráfico nos Estados Unidos (o FBI oferece 15 milhões de dólares, ou 75 milhões de reais, por sua captura). Se arrisca num drible diplomático em jogo que não tem recompensa. Só consequências.