Aberta a porta da sala, foi convidado a entrar. Nunca haviam se encontrado, mas o visitante o reconheceu. Foi conduzido a uma sala menor, à esquerda da entrada do apartamento no número 308 da Rua dos Ingleses, na Bela Vista, São Paulo.
— O que você veio fazer aqui?
— Vim entregar um documento, o senhor sabe quantas páginas são?
— O senhor que veio, o senhor que deve saber…
Como o tom da voz pareceu-lhe intimidante — lembrou no depoimento — achou melhor explicar a necessidade da pergunta, uma espécie de contrassenha, porque recebera orientação de fazer a entrega diretamente a ele.
— Eu trouxe 60. O senhor sabe?
— Sei.
Enfiou a mão no bolso do paletó e apresentou dois bolos de dinheiro. Haviam atravessado 12 quilômetros da capital paulista escondidos em pequenos sacos plásticos presos às suas pernas com fita adesiva. Pouco antes de chegar ao edifício elegante, passou-os ao andar de cima do vestuário.
— O que aconteceu em seguida? — perguntaram os investigadores.
— Ele não pôs a mão no dinheiro. Pediu para colocar numa mesinha que tinha lá, junto à parede, embaixo de um quadro. Deixei ali, só isso. Ele me acompanhou à porta, eu peguei o elevador e desci.
Fernando Collor, ex-presidente da República, na época senador pelo PTB de Alagoas, trancou-se com os 60 000 reais em notas de 100. Rafael Ângulo Lopez retornou ao escritório do Itaim, para outras entregas à clientela da lavanderia de dinheiro de Alberto Youssef, principal “doleiro” de empreiteiras investigadas na Operação Lava-Jato.
Dias atrás, Collor foi condenado por corrupção num processo com um excesso de provas: foram rastreadas 369 operações de lavagem de dinheiro em contas bancárias pessoais e empresariais. Ficou comprovado que recebeu 20 milhões de reais no curto espaço de 36 meses em subornos de empreiteiros para facilitar negócios obscuros com a Petrobras. Sobram indícios de corrupção em escala bem maior, com trânsito de dinheiro nos bancos de Hong Kong, por exemplo, mas a investigação acabou restrita à praça financeira nacional.
“Collor, condenado, mostra como é a gerência do atraso na política”
Foi sentenciado por crimes cometidos no mandato de senador, entre 2009 e 2014, quando Lula e Dilma Rousseff o reconheceram como aliado de ocasião no Senado e, em troca, deram-lhe uma fatia da direção do grupo Petrobras, com poder de decisão sobre contratos de construção de bases de distribuição de combustível na Baixada Fluminense e em áreas remotas da Amazônia.
Collor é um fenômeno de sobrevivência no banco dos réus. Venceu Lula na primeira eleição com voto direto para presidente desde a ditadura, foi deposto e declarado inelegível. O STF arquivou o caso da sua usina de negociatas no breve período de governo (1990-1992).
Outro processo por falcatruas em contratos públicos começou a tramitar na virada do milênio. O caso só foi a julgamento em 2014, quando era senador pelo PTB, com direito a foro privilegiado, e os crimes estavam prescritos, sem chance de punição efetiva. Nessa época, já estava sob investigação por corrupção na Petrobras, que agora rendeu-lhe condenação a oito anos e dez meses de prisão.
Aristocrata de Alagoas, como descrito pela própria defesa, é prova eloquente da vitalidade dos arranjos reinventados a cada ciclo eleitoral para perpetuar a rede de interesses políticos na partilha privada de bens públicos. A opção preferencial de Lula e Dilma pela condução do atraso como tática de “governabilidade” revigorou Collor nos últimos 31 anos. O Judiciário fez o restante.
No próximo 12 de agosto, completará 74 anos. Em Brasília, e principalmente no STF, é difícil encontrar alguém disposto a apostar um único centavo nas chances de sua prisão no curto prazo.
A sentença deve ser mantida, mas a tendência é de alívio com manobras jurídicas para atraso. No limite, prevê-se um pedido de suspensão das penalidades sob alegação de “razões humanitárias”. Na essência, trata-se da reivindicação do direito à vida como mais relevante do que a restrição prevista na aplicação da lei — benefício praticamente inacessível aos que não possuem dívidas patrimoniais de 200 milhões de reais com o setor público nem mantêm modelos esportivos Lamborghini, Porsche e Ferrari enfeitando suas garagens.
Não é culpa dos alagoanos. Eles avisaram, em 1989, quando Collor deixou o governo estadual para se candidatar à Presidência. Na época, como registrou o repórter Ricardo Amaral, da Folha, fizeram um carnaval na avenida beira-mar, em Maceió. Improvisaram:
“Vai, mas vai de vez
O inferno é pouco
Para o que você fez”.
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Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846