Vai levar tempo para compreender o que aconteceu no Brasil sob Jair Bolsonaro. Parte da história começa a ser revelada nas investigações sobre a política de cegueira deliberada adotada na pandemia; os incentivos a crimes ambientais na Amazônia; o abuso de poder na campanha eleitoral do ano passado e o fiasco na tentativa de golpe de Estado.
Sabe-se muito pouco, ainda, sobre o comportamento da elite da burocracia num governo que tentou enquadrar a administração civil em moldura militarista, impondo relações de hierarquia, obediência e lealdade na cadeia de comando em clima de rarefeita transparência.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada acaba de publicar duas pesquisas sobre reações dentro da burocracia à desmontagem de políticas públicas e práticas consolidadas. Foram realizadas com base em longas entrevistas com 1 078 servidores, em grupos distintos, durante 36 meses, entre março de 2019 e abril do ano passado. A referência foi um cadastro coletivo montado por entidades do funcionalismo para casos de crise em órgãos públicos, conhecido em Brasília como “assediômetro”.
As pesquisadoras Michelle Morais de Sá e Silva, da Universidade de Oklahoma (EUA), Gabriela Lotta e Mariana Costa Silveira, da Fundação Getulio Vargas, e Michelle Fernandez, da Universidade de Brasília, produziram uma rara fotografia dos conflitos dentro da burocracia durante o governo Bolsonaro. Tudo, praticamente, em tempo real.
O campo começou a ser minado 72 horas depois da posse, na quinta-feira 3 de janeiro de 2019, quando Bolsonaro destituiu 3 000 pessoas de cargos de chefia no serviço público. A decisão nada teve a ver com padrões de eficiência no serviço público, a razão foi essencialmente política, como deixou claro o chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni: “Nós todos sabemos do aparelhamento que foi feito nos quase catorze anos que o PT aqui ficou” (em janeiro passado, Lula fez coisa parecida, mas em menor escala).
O processo de controle da burocracia foi lento e gradual. A desconfiança virou rotina, com equipes de militares coordenadas pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, investigando redes sociais de funcionários civis em busca de “vínculos comunistas” (a prática prossegue com sinal trocado, agora o foco está na busca de laços com “a direita”).
“Pesquisas expõem os conflitos na burocracia sob Jair Bolsonaro”
Onde alguns identificavam “um projeto explícito de destruição do Estado, compatível com o Estado autoritário”, outros percebiam desorganização e paralisia da máquina governamental com o objetivo de “desmonte de políticas públicas para não se fazer nada”. Essa impressão foi reforçada pela anomia em ministérios como o da Educação e a ocupação militar da Saúde. Cresceu (122%) o número de representantes das Forças Armadas no governo — saltou de 2 765 no último ano de Michel Temer para 6 157 no segundo ano de Bolsonaro.
Medo, preocupação e autocensura passaram a ser expressões recorrentes nas entrevistas feitas na época. Muitos optaram pelo silêncio como tática de sobrevivência, por acreditarem-se perseguidos: “Não falo mais nada, porque há um monitoramento do que a gente fala em fóruns privados”. Outros se diziam “em choque” com iniciativas de repressão, como a de abertura de processo contra professores da Universidade Federal de Pelotas por críticas ao governo.
Sentimentos de degradação nas relações pessoais afloraram dentro dos escritórios do governo: “As coisas estavam ruins durante a administração Temer, mas nada se compara à do Bolsonaro. A capacidade de fazerem as coisas piorarem parece não ter fim! Agora tudo é muito frágil. (…) A diferença é que agora nós temos medo. Antes nós tínhamos medo com relação à nossa carreira: ‘bom, talvez eu vá perder meu DAS, talvez seja estigmatizado’ (…), mas agora a gente tem medo de ser realmente perseguido”.
Um em cada quatro entrevistados demonstrou preocupação com a arrogância na proibição de procedimentos básicos e usuais, como o uso da rede eletrônica estatal destinada ao registro da rotina administrativa. O sistema on-line de protocolo é ferramenta obrigatória. Documenta cada estágio de uma decisão e, em contrapartida, garante a proteção legal dos usuários. No governo Bolsonaro a opção preferencial foi a rede privada (WhatsApp).
A repetição desse tipo de queixa (beira 40% em uma das pesquisas) sugere que a informalidade nos atos oficiais não foi casual no governo Bolsonaro. É a fórmula do crime perfeito na administração pública: sem memória, não há rastros. Nem culpa.
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Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847