Cadê o dinheiro?
Bilhões de reais dos cofres públicos sumiram e o destino é incerto e não sabido

“Temos a gravíssima situação em que BILHÕES DE REAIS do Orçamento da Nação tiveram origem e destino incertos e não sabidos” — escreveu com ênfase o juiz do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, na semana passada. Ele se referia à extraordinária quantia de 186,3 bilhões de reais extraída do Orçamento da União nos últimos seis anos por 360 deputados e 69 senadores, sem clareza na prestação de contas.
É um relevante volume de dinheiro dos impostos; equivale a 30 bilhões de dólares. Supera todo o gasto federal com educação previsto para este ano. Se fosse no mercado privado, chamaria a atenção por corresponder ao dobro das vendas anuais do grupo Mercado Livre, ou ainda por ser equiparável ao total do patrimônio líquido do Itaú Unibanco, o maior conglomerado financeiro do país.
Há dois anos o Supremo tenta obter do Congresso informações “completas, precisas, claras e sinceras” sobre quem autorizou, manejou e qual foi o destino dessa dinheirama — uma obrigação imposta pela Constituição a qualquer pessoa física ou jurídica que “utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre” dinheiro, bens e valores públicos. No entanto, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, mantêm obstinada resistência à abertura dessa bilionária caixa-preta parlamentar.
Já se passaram 97 semanas, quase 700 dias, desde que a então presidente do STF, Rosa Weber, mandou identificar “de modo acessível, claro e fidedigno” todos os deputados e senadores patrocinadores, apoiadores e beneficiários que integram essa rede de interesses financeiros e eleitorais incrustada no orçamento público. Mais um ano está terminando sem que tenham sido apresentadas informações com transparência sobre parte expressiva das emendas parlamentares. Câmara e Senado têm resumido suas respostas numa só palavra: “Impossível”. É sinônimo de inviável, irreal e impraticável, informam os dicionários.
“Bilhões de reais dos cofres públicos sumiram e o destino é incerto e não sabido”
É paradoxo político, desafio à lógica e inútil tentativa de dar sentido àquilo que não tem nexo. Porque é muito difícil acreditar que 186,3 bilhões de reais em dinheiro dos impostos (30 bilhões de dólares) tenham sido manipulados anonimamente por 429 deputados e senadores no escurinho do Congresso, sem vestígio ou registro em ofícios, e-mails e planilhas orçamentárias entre 2019 e 2024. Mais absurdo, como anotou o juiz Flávio Dino, seria imaginar que “tais documentos existiram e foram destruídos no âmbito dos Poderes Legislativo ou Executivo”, durante os governos Jair Bolsonaro e Lula.
Consequências políticas são visíveis e indicam uma concorrência desleal nas urnas: 98% dos prefeitos se reelegeram nas cidades mais privilegiadas por emendas parlamentares. E nas vinte que mais receberam verbas federais, às vésperas da eleição municipal, uma em cada três obras financiadas nem saiu do papel.
Promoveu-se, também, inédito despejo de 5,5 bilhões de reais (quase 1 bilhão de dólares) diretamente dos cofres públicos para entidades não governamentais. Pouco mais da metade foi parar em contas bancárias no Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo. Breve exame em dez organizações beneficiadas comprovou que metade não tem pessoal e estrutura física para realizar os projetos custeados com dinheiro dos impostos a partir de obscuras decisões de parlamentares, anônimos beneméritos.
No STF, por enquanto, evita-se falar em crimes, como desvio e peculato — delitos reconhecidos nas ruas como roubo de dinheiro público. “É precoce afirmar”, ressalvou o juiz Flávio Dino sobre a “esdrúxula situação constatada”. Acrescentou, com ênfase na grafia: “Mas é de clareza solar que JAMAIS HOUVE TAMANHO DESARRANJO INSTITUCIONAL COM TANTO DINHEIRO PÚBLICO, EM TÃO POUCOS ANOS”.
Embates entre Congresso e governo sobre centralismo orçamentário, com ou sem arbitragem do Supremo, têm custo político e econômico. Como observa Creomar de Souza, da Dharma Consultoria, agora constituem “fontes de preocupação para uma reestruturação da lógica de endividamento público”. É uma situação alentadora de especulações contínuas sobre o crescimento da dívida pública e a capacidade de solvência do Estado brasileiro.
Para manter lacrada a caixa-preta do Congresso, os presidentes da Câmara e do Senado, e prováveis sucessores, resolveram se enrolar na bandeira das “prerrogativas” do Legislativo. Numa interpretação benigna, é medida de autoproteção, reação ao aumento do escrutínio social sobre as contas públicas e as condutas dos políticos. Outra leitura possível é a tentativa de garantia de impunidade. O problema é que sempre haverá alguém perguntando: “Cadê o dinheiro dos impostos?”.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922