O tempo passou na janela e os eleitores mudaram radicalmente de direção em pequenas e médias cidades do Norte, do Sul e do Centro-Oeste, onde houve um aumento recorde de população.
Em Senador Canedo (GO), por exemplo, o número de habitantes cresceu 84%. A cidade vizinha a Goiânia passou de 84 400 para 155 600 residentes seduzidos pelas oportunidades de renda no entorno de um polo petroquímico vital para o agronegócio no Centro-Oeste.
Em 2010, quando Lula se despedia do poder, Senador Canedo reafirmou-se como reduto petista. Deu 55,5% dos votos a Dilma Rousseff. Uma dúzia de anos depois, presenteou Jair Bolsonaro com 59,4%.
Esse enredo político repetiu-se em Fazenda Rio Grande (PR), na região metropolitana de Curitiba, onde a população aumentou 82,3%, para 149 000. Também aconteceu em Parauapebas (PA), a 750 quilômetros de Belém, que cresceu 73% e agora abriga 266 400 pessoas. Reproduziu-se em 18 das 20 cidades com maior crescimento populacional verificado pelo IBGE no ano passado.
O mapa eleitoral mudou com a marcha para o interior, sobretudo ao Centro-Oeste e Norte, e mudanças relevantes no pedaço do país que sociólogos chamam de “Brasil profundo”. Quatro de cada dez brasileiros agora moram em pequenos municípios, aqueles com menos de 100 000 habitantes. São 87,3 milhões de pessoas, que representam 43% da população (total de 203 milhões). E a ampla maioria (73,1%) reside em localidades com menos de 500 000 habitantes.
Contam-se 319 metrópoles. São núcleos de classe média urbana, onde se concentram 115,5 milhões de pessoas, 57% da população. Pela régua da cultura musical popular, o gênero sertanejo predomina. No último verão, seis dos dez artistas nacionais mais tocados na plataforma Spotify nasceram no Centro-Oeste.
A força do interior é consequência da expansão da agricultura, da pecuária e da indústria extrativista. Os reflexos são visíveis no cenário político. Líderes de organizações autoproclamadas de esquerda não ocultam perplexidade com a resiliência de uma certa ideia de conservadorismo e sua influência nas eleições da última década e meia.
“Surgem um novo mapa eleitoral e um outro tipo de radicalismo”
No Partido dos Trabalhadores, por exemplo, ainda tenta-se decifrar o enigma de Lula nas urnas de Minas Gerais no ano passado. Ele saiu do primeiro turno com 560 000 votos à frente do adversário. Três semanas depois, venceu a segunda rodada com apenas 49 000 votos de vantagem num eleitorado de 16 milhões — mais de dois terços vivendo em 819 pequenas e médias cidades fora da região metropolitana.
A esquerda não está solitária na busca de respostas. Líderes da direita habituada a comer de garfo e faca também tentam entender a natureza das transformações. O Censo sugere a necessidade de mais atenção às alterações no meio ambiente dos eleitores do que à personalidade do político extremista que surfou nas urnas entre 2018 e 2022.
“Bolsonaro não criou a demanda por ideias mais conservadoras, elas estavam aí muito antes dele”, observa Leonardo Barreto, da Vector. “Agora, mesmo com ele fora do jogo, é preciso muito cuidado, porque estamos caminhando para um novo radicalismo. O governador de Minas, Romeu Zema, está aí dizendo que o país que trabalha não quer mais sustentar o país que não trabalha. Fomenta-se a ideia de que existe um partido que quer manter as pessoas dependentes do estado, em programas sociais, em contraste com propostas focadas no liberalismo, no empreendedorismo. O Lula gosta de enfatizar a ideia de que tem gente que só toma café, almoça e janta pela existência dele. Se não mudar, vai manter aceso esse tipo de polarização, que é muito perigosa.”
Creomar de Souza, da Dharma Politics, acrescenta: “A lógica do país mudou nessa última década e meia sem o Censo: um pedaço da população que lutava para sobreviver mudou, passou a dizer: ‘Resolvi meu problema de sobrevivência, agora quero prosperar’. E aí o que surgiu de novidade na esquerda? Foi o discurso sobre identidades, importante, mas que só atende parcela pequena da sociedade. Quando o foco discursivo fica numa temática, entrega-se para o outro lado todo o restante. Colocar o adversário num espaço de vilania talvez já não seja suficiente para ganhar a eleição. É preciso oferecer meios de melhoria de vida. Isso explica por que determinados estratos da população foram se afastando do discurso do petismo, e criou-se uma demanda eleitoral diferente”.
A novidade é a mudança na cabeça do eleitor.
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Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849