Anarquia orçamentária revela perda de rumo do governo e do Congresso
Definição de gastos mostra a falta de prioridades nacionais, em meio à grave crise: aumentou-se o salário-mínimo em 10% e o fundo eleitoral em 190%
Na noite da última sexta-feira, senadores e deputados estavam finalizando a proposta do Orçamento de 2022 para votação quando alguém avisou a chegada de novos pedidos do governo Jair Bolsonaro.
Um deles era para aumentar em R$ 343 milhões os gastos militares, com verbas que até então estavam destinadas ao financiamento do seguro-desemprego e da assistência social.
É caso simbólico da anarquia orçamentária num país em que 66 milhões de pessoas, um terço da população, dependeram do auxílio do Estado para sobreviver na crise pandêmica do ano passado.
Mostra como governo e Congresso perderam o rumo das prioridades políticas nacionais, em meio a uma grave crise econômica, fiscal e sanitária.
No mapa das contas nacionais, um de cada quatro reais em despesas federais do próximo ano será destinado ao refinanciamento da dívida pública. Esse gasto vai ser de R$ 1,8 trilhão, ou 25% do total do orçamento (R$ 4,8 trilhões).
Significa que, em 2022, o país vai consumir um volume de dinheiro equivalente ao custeio de 15 Bolsas Família somente no pagamento de juros da dívida.
A despesa com o endividamento estatal somada aos gastos com a Previdência Social e com o funcionalismo nos três Poderes consome a quase totalidade (93%) dos recursos federais disponíveis.
É no destino da fração restante (7%) do orçamento público que o governo escala e o Congresso homologa prioridades.
Em tese, o plano orçamentário anual deveria refletir uma agenda de investimentos coerente com as necessidades do país. Na vida real, não é bem assim.
Exemplo: há quatro décadas a economia brasileira está estagnada, e, no entanto, o investimento federal no ano que vem deverá ser o menor desde os anos 50 do século passado — descontada a inflação.
A definição dos gastos mostra como governo e Congresso perderam a bússola do desenvolvimento.
O principal investimento do governo Bolsonaro vai ser em programas militares (R$ 8,8 bilhões). Será 87% maior que em Saúde, em plena pandemia, e 30% acima do previsto para obras públicas de Infraestrutura.
Haverá mais dinheiro para a Aeronáutica gastar em aeronaves de combate (R$ 1,2 bilhão) do que para programas de saneamento básico (R$ 1 bilhão). É paradoxal num país onde 35 milhões moram em casas sem água tratada e mais de 100 milhões não têm acesso a redes de esgoto.
Houve uma reserva simbólica de recursos (R$ 79 mil, o equivalente a R$ 217 por dia) para programas de reforma agrária e de regularização fundiária, embora a disputa por terras públicas e privadas seja o motor da violência no campo, principalmente na Amazônia e no Cerrado.
O melhor retrato da anarquia orçamentária, porém, está na diferença de tratamento ao salário-mínimo e ao fundo de financiamento de campanhas eleitorais.
O salário-mínimo vai subir 10%, para R$ 1.210,00 no próximo ano.
Certamente, não será suficiente sequer para repor a inflação média deste ano para quem recebem — cerca de 30 milhões de trabalhadores formais e ampla maioria de aposentados e pensionistas da Previdência Social.
Já o fundo eleitoral terá um aumento de 190%, para R$ 4,9 bilhões.
Vai irrigar o caixa de 34 partidos na campanha de 2022, que vão receber, também, mais R$ 1 bilhão do fundo partidário, para financiar suas estrutura burocráticas.
Partidos políticos vão se transformar em potência econômica no Brasil de 2022, com uma receita garantida no orçamento de R$ 5,9 bilhões.
Não é pouco. Equivale a um bilhão de dólares, nível de faturamento só alcançado por uma centena de empresas brasileiras.