Há sete semanas Lula desfruta o melhor momento na vida de um presidente eleito. O período entre a vitória nas urnas e a posse é um ciclo paradisíaco de festas, homenagens e aplausos para quem sobrevive à travessia do inferno da campanha eleitoral. Só há bônus, nenhum ônus.
O choque de realidade começa na segunda-feira, dia 2 de janeiro. E, por enquanto, nada indica que será fácil a vida no novo governo.
Lula saiu das urnas com pouco mais da metade (50,9%) dos votos e uma ideia no bolso para aplastar a futura oposição, lastreada na outra metade do eleitorado: obter do Congresso aval para atravessar a primeira metade do mandato livre de amarras políticas e fiscais.
Calculou em 200 bilhões de reais por ano, no primeiro biênio, o déficit necessário no Orçamento para que possa governar com dinheiro suficiente para investir e custear programas sociais, como o da renda básica para 21 milhões de famílias pobres. Para tanto, precisa de mudança urgente na Constituição. Seria a 12ª emenda a ser promulgada neste ano eleitoral.
Entre a ideia e o papel, a proposta ganhou um acréscimo relevante: a eliminação dos limites na tomada de empréstimos externos para bancar um futuro programa de obras de infraestrutura. Ou seja, o novo governo quer aval não somente para gastar 200 bilhões de reais anualmente, fora do previsto no Orçamento, como pretende obter sinal verde do Legislativo para o endividamento externo.
No Congresso há gente de todo tipo, menos bobo — senador ou deputado com fama de simplório costuma calçar meia sem tirar sapato, enquanto amarra cadarço. Ali, habitualmente, as complexas equações orçamentárias são resolvidas na calculadora eleitoral.
Na leitura parlamentar, Lula-III vai começar com reservas cambiais expressivas (327 bilhões de dólares) e, praticamente, sem dívida pública externa. É cenário diferente de 2003, no primeiro mandato. Em tese, não teria problemas para se endividar no exterior, em volume de dinheiro similar àquele que já prevê gastar acima do Orçamento, para sustentar um programa de investimentos públicos em infraestrutura.
“O Congresso acha difícil Lula cobrir déficit sem aumentar impostos”
No caminho entre o Senado e a Câmara, a chamada PEC da Transição passou a ser vista como plataforma de poder, com impacto no caixa do futuro governo muito além do valor aparente, o dos programas sociais, e com óbvias consequências políticas.
Uma delas é o espectro de um governo fortalecido, por antecipação, em escala suficiente para influir nas eleições municipais que acontecem no meio do mandato (2024).
Outra, em paralelo, é a possibilidade de Lula viabilizar, desde já, uma perspectiva financeira para aumentar o caixa no último biênio (2025 e 2026), na temporada de eleição presidencial.
Tudo isso antes da posse, e sem que o novo governo tenha apresentado plano que indique, por exemplo, como pretende controlar as contas públicas — o “arcabouço fiscal”, no economês da semana.
A pergunta bilionária no Congresso agora é: o que Lula planeja fazer para cobrir o déficit orçamentário que deseja contratar antes mesmo de começar a governar?
Como não há chance de alquimia, dissemina-se a suspeita de aumento da inflação e dos impostos, a bordo de uma reforma já anunciada como prioritária nos primeiros doze meses.
Significaria ampliar a atual carga tributária, hoje equivalente a 34% do produto interno bruto (PIB). Esse nível é similar ao da Inglaterra, com diferenças óbvias na qualidade dos serviços estatais e, principalmente, na absurda concentração da renda no Brasil.
Lula apostou alto no primeiro lance, mas o Congresso, sempre liberal nos gastos, não costuma ser benevolente com aumentos de impostos.
Para alguns senadores e deputados, ele cometeu um erro de cálculo político ao subestimar reações à proposta de aumento do déficit, com eventual compensação por aumento de impostos.
Gastou muita energia nas últimas sete semanas. Basicamente, fomentou desconfiança, dentro e fora do Congresso, num ambiente econômico com fragilidades visíveis, e cuja expressão matemática está na maior taxa de juro real do planeta (8%). Sem necessidade, ele multiplicou os riscos e ampliou as incertezas sobre o futuro das contas de um governo que nem sequer começou.
Se foi precipitado, ou não, vai-se descobrir depois do réveillon. Provavelmente, a lua de mel política de Lula será mais curta do que a que ele viveu nos mandatos do começo do milênio.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820