Tudo havia sido cuidadosamente planejado para impressionar representantes das maiores economias do mundo, agrupadas no fórum G20. Eles passariam três dias nos arrabaldes de Cuiabá, em Mato Grosso, discutindo os rumos do comércio global diante da vitrine da moderna agricultura no Centro-Oeste, um êxito do capitalismo no Brasil nos últimos cinquenta anos, com inquestionável poder de competição empresarial.
Deu tudo errado. Cinco meses de estiagem transformaram o esplendor da paisagem rural num cenário sertanejo muito seco, sob fuligem e fumaça densa liberada pelos incêndios no horizonte, com um cheiro de queimado invadindo narinas de homens e mulheres relevantes no agronegócio em cinco continentes. Carlos Fávaro, ministro da Agricultura, pretendia realçar o prodígio brasileiro numa região de cultivo de soja, milho e algodão, onde se contam dez cabeças de boi para cada habitante. Passou o tempo dando explicações.
Em Brasília, o governo confirmava incêndios em vinte estados. Era fogo se alastrando por dois terços do país, cidades da Amazônia encobertas, isoladas às margens de rios secos, e chuvas de fuligem episódicas no Sudeste e no Sul.
Lula saiu de uma reunião vazando perplexidade com a indulgência do próprio governo no comércio de insumos agrícolas: 80% dos agrotóxicos vendidos no Brasil são proibidos nos Estados Unidos e na Alemanha, disse. “É inaceitável, vou conversar com a bancada ruralista, com quem é civilizado, com quem não é, e com os empresários do agrotóxico.”
Sobravam-lhe más notícias. Houve aumento significativo das críticas a seu desempenho na condução da política ambiental, informava pesquisa do Ipec (antigo Ibope). Em abril, 33% dos eleitores julgavam “ruim” ou “péssima” sua atuação nessa área. Na semana passada, a reprovação subiu para 43%. Ou seja, em apenas cinco meses, avançou 10 pontos percentuais a censura pública às escolhas de Lula nos impasses ambientais.
“Crise ambiental alarma Brasília: vai ficar ruim para os negócios”
Na terça-feira 17, ele reuniu chefes do Legislativo e do Judiciário para combinar uma reação institucional à emergência fumegante. Ministros ressaltaram suspeitas de ação organizada, “terrorismo climático”, na definição de Marina Silva (Meio Ambiente). A Polícia Federal fez prisões em flagrante e iniciou 83 inquéritos, completou Ricardo Lewandowski (Justiça). Mas são casos marginais, insuficientes para justificar os quase 2 000 focos de queimadas no mapa nacional.
A dimensão dos incêndios e dos tormentos nas cidades atesta a falta de preparo governamental na contenção de danos. A extensão e a gravidade da estiagem eram previstas em relatórios oficiais desde dezembro. Foram agravadas pela ausência quase absoluta de iniciativas públicas coerentes para defesa civil, prevenção e preservação ambiental num país onde políticos e juízes produzem um cardápio diário de decisões lastreadas em mensagens de negacionismo, de contradição e de superficialidade sobre a crise climática.
A conta chegou. Ela é alta. Tende a ficar mais cara, a cada ano, para governo, Legislativo e Judiciário, e economicamente mais pesada para a produção e o emprego nas cidades e no campo. São Paulo e Minas já contabilizam perdas expressivas em lavouras de cana, café e laranja. Nas fazendas paulistas, por exemplo, mais de 230 000 hectares de cana foram incinerados. A produção de laranja deverá cair em um terço.
“Temos danos diretos, imediatos, à economia e à imagem do Brasil”, comentou Herman Benjamin, presidente do Superior Tribunal de Justiça, na reunião no Palácio do Planalto. “Precisamos nos alarmar”, completou Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, dirigindo-se a Lula: “Nós estamos na iminência de termos obstáculos às nossas exportações, mas não podemos é achar que é vergonhoso gerar riqueza, ter vergonha de ser o maior produtor mundial de soja, milho e açúcar”.
Todos na sala sabiam do que o senador falava. Na noite do próximo réveillon, terça-feira 31 de dezembro, entra em vigor nos países da União Europeia uma série de normas de repressão a produtos agroindustriais com origem em áreas desmatadas. O governo Lula pediu adiamento por seis meses, a Alemanha apoiou, mas não há garantias. Se a prorrogação for aceita, o prazo acabará às vésperas da conferência ambiental da ONU, no ano que vem em Belém do Pará.
Numa etapa de recrudescimento de nacionalismos, é previsível que a decisão europeia balize novas barreiras protecionistas nos Estados Unidos e na Ásia. Se nada mudar na paisagem verde-amarela, o ambiente vai ficar ruim para os negócios brasileiros.
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Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2024, edição nº 2911