Hora de falarmos em desmilitarização das polícias
Uma polícia militar que - sabe-se lá porque cargas d'água - se irmana com terroristas políticos, merece ser repensada

Depois do que vimos – e principalmente deixamos de ver – no 8 de janeiro de 2023, dia marcado por uma erupção de violência e estupidez operadas por vândalos de extrema direita, todos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, é chegada a hora de iniciarmos uma ampla discussão sobre a conveniência da desmilitarização das polícias no Brasil.
A destruição perpetrada na Praça dos Três Poderes, contra o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto foi, antes de qualquer outra coisa, fruto da inércia e omissão da Polícia Militar do Distrito Federal, órgão de segurança pública que, por força de sua própria missão constitucional, tinha que atuar na prevenção e repressão daquela tragédia anunciada.
E não foram poucos os registros em vídeo da inação da PMDF, seja no absurdo da utilização de viaturas ostensivas para “escoltar em segurança” uma multidão de terroristas até o local do crime, seja na conduta risível e patética de, recreativamente, tirarem selfies com os fanáticos que se preparavam para destruir o patrimônio público na Praça dos Três Poderes.
Uma polícia que – sabe-se lá porque cargas d’água – se irmana com terroristas políticos, merece ser repensada.
A atividade policial é uma atividade eminentemente civil. Não há porque termos policiais forjados com treinamentos e doutrinas militares, para funcionarem na urbe, em ambiente predominantemente civil.
E me arrisco a afirmar que o militarismo exacerbado do ideário do ex-presidente deslocou, Brasil afora, corações e mentes de um grande número de policiais militares para o seio do bolsonarismo.
Para início de conversa, temos que observar o problema das polícias militares, sobretudo, como uma questão identitária.
E percebemos que, como bem observa o Professor Artur Trindade, da UNB – que já comandou a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, “a militarização diz respeito ao grau de identificação das polícias com o campo militar”.
E a desmilitarização das polícias, se ocorrer, deverá ser operada por intermédio de um grande processo de desconstrução das identidades profissionais, até porque, como coloca o Professor Trindade, a militarização policial ocorreu por via inversa, isto é, por meio de um processo de construção desta identidade militar no profissional de polícia.
Ora, o que estamos percebendo nas atuações da Polícia Militar – aprofundado durante a gestão de Jair Bolsonaro – é a exacerbação da violência e da letalidade quando do cumprimento de missões de repressão à criminalidade em comunidades e áreas de bolsões de pobreza e, em contrário senso, a letargia e a complacência quando do enfrentamento a situações como a de 8 de janeiro, quando os criminosos são golpistas motivados por índole violenta e autoritarista, e insuflados por uma liderança militar, no caso, pelo próprio capitão Jair Bolsonaro.
E necessitamos de uma polícia 100% identificada com o cidadão, e com a cidadania. Afinal, o mundo é majoritariamente civil, e o militarismo é tão somente um microcosmo desse espaço civil.
Enfim, a polícia ideal para as 27 unidades da Federação seria uma polícia única, civil. Esse departamento de polícia teria dois braços principais, um de polícia judiciária (investigativa), aos moldes exatos das atuais polícias civis, e um outro braço ostensivo, para o policiamento preventivo, missão da atual polícia militar.
As doutrinas e conceitos de formação desse braço ostensivo da polícia deveriam ser revistos e repensados, no sentido de sua total desmilitarização. Essa polícia seria uniformizada, e não mais fardada. De preferência, deveríamos buscar outra nomenclatura para o ranking de postos, evitando totalmente as posições hierárquicas utilizadas nas Forças Armadas, como tenente, capitão, coronel etc. Pois bem, o ethos militar deveria ser totalmente retirado do perfil profissiográfico do policial. E, a bem da verdade, a desmilitarização implica necessariamente na profissionalização das polícias.
Se seguirmos nessa toada, veremos, num estágio mais aprofundado dessa crise, a criação e o fortalecimento de centenas de Guardas Municipais com perfil militarizado, e comandadas por militares oriundos das PMs e do próprio Exército. Se for para fazer a alegria da indústria de armas e munições, o caminho é esse mesmo…
E, finalmente, o corporativismo e os interesses classistas, de nichos profissionais, não poderão sobrepujar o interesse público, de 215 milhões de brasileiros. A segurança pública não pode ser refém dos seus operadores.