Futebol e política: as lições de uma pelada a um Brasil polarizado
História de grupo de amigos que se reúne há seis décadas para jogar pode servir de exemplo para o atual momento que vive nossa sociedade

Em um ano que tem tudo para exacerbar a polarização e o divisionismo da nossa sociedade, resolvi escrever meu primeiro artigo sobre um assunto mais ameno: um livro interessante, recém-lançado, que conta a trajetória de uma pelada jogada entre um grupo de amigos desde 1958.
Em “5 anos em 50 crônicas de dentro do campo do Piraquê”, com prefácio assinado pelo tricampeão Tostão, lançado pela Dilivros em dezembro passado, o autor, o engenheiro civil, mestre pela COPPE/UFRJ e doutor pelo Imperial College de Londres, Luís Rafael Palmier, que é Professor da Universidade de Minas Gerais, percorre o caminho inverso do genial dramaturgo Nelson Rodrigues, que às vezes enxergava peladas homéricas nos grandes clássicos que assistia no Maracanã. Pois bem, Rafa, como é conhecido o autor, enxerga derbies antológicos nos rachas semanais disputados por um grupo de coroas em um campo de futebol situado às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio, e a partir daí produz suas crônicas impagáveis, com um estilo deliciosamente rodriguiano.
A pelada eterna, como chamada no livro, foi fundada pelo nonagenário Gerôncio Cid Meira de Mello e Silva, que, hoje com 94 anos, jogou até os seus 90 anos bem chutados.
Mas, para muito além dos delírios do genial peladeiro doutor, o livro nos traz algumas lições interessantes e oportunas. A primeira, e mais óbvia, é a de como o futebol é relevante para o brasileiro. Afinal, o grupo de peladeiros veteranos atravessou seis décadas, sem arredar do seu encontro semanal dedicado ao “ludopédio”. Claro que houve renovação, mas alguns dos craques chegaram a jogar por mais de meio século. Houve também muitas brigas, rusgas figadais e desentendimentos, mas tudo foi invariavelmente superado, sempre em prol do jogo a ser jogado.
Para termos uma ideia, quando Gerôncio e sua turma se reuniram pela primeira vez, em torno de uma bola, na famosa Casa das Pedras, no Alto da Boa Vista, que pertencia ao seu tio – o industrial Drault Ernanny – o Brasil não tinha nenhum título mundial de futebol, e Pelé era um menino de 17 anos.
O mundo deu mil voltas, quando presidentes foram eleitos e assassinados, revoluções eclodiram, movimentos e tendências nasceram e feneceram. Modismos foram lançados e caíram no esquecimento. Enfim, a Terra girou inúmeras vezes em torno do astro rei, sessenta e duas, mais precisamente, e a pelada seguiu, embaixo de sol e chuva.
Tudo que ocorreu de dramático no mundo – as mortes dos Kennedys, o homem pisando a Lua, a crise do Petróleo, as guerras no Oriente Médio, a epidemia da AIDS, a queda do Muro de Berlim, a invenção da Internet, a derrubada da Torres Gêmeas -, absolutamente tudo, foi mero pano de fundo para que dezesseis caras se revezassem na disputa de um jogo de bola todos os sábados de manhã em um escondido campinho de futebol society.
A segunda lição passada por essa prosaica pelada, e que nos é bastante oportuna, é a importância do foco e do interesse coletivo, para podermos conviver com as nossas divergências, com um mínimo de harmonia, para transcender ao tempo e superar dificuldades, em busca dos nossos objetivos.
Cabe aqui esclarecer que o grupo de craques é eclético, sendo pessoas de diferentes profissões, como gostos e perfis distintos, e que se encontram tão somente em torno de uma bola de futebol.
Seria bom que nós brasileiros deixássemos de lado algumas diferenças, abandonássemos a polarização que acomete a nossa sociedade, de maneira tão deletéria, e nos reuníssemos em torno do que é de fato importante para avançarmos em direção ao nosso desenvolvimento como nação.
A pelada do Gerôncio nos ensina esse caminho. O grupo perdeu três dos seus heroicos jogadores para o Covid-19, mas segue seu destino rumo à eternidade. Logo essa será mais uma página virada da História, pois a bola tem que seguir rolando.