
O impasse de Will Smith: ser ator ou ser astro?
Vamos começar aqui com o episódio real do qual foi tirado este drama com Will Smith que acaba de entrar em cartaz nos cinemas, porque ele é fabuloso:
O patologista Bennet Omalu, nascido e educado na Nigéria, tinha 34 anos quando chegou para seu plantão no morgue do Condado de Allegheny, em Pittsburgh, Pensilvânia, em setembro de 2002, e cortou uma fatia do cérebro de Mike Webster – ou “Iron Mike”, centro do time de futebol americano Pittsburgh Steelers durante quinze temporadas, jogador homenageado no Hall da Fama e ídolo da cidade. Aposentado do futebol havia vários anos, Webster morrera aos 50, depois de ter enlouquecido de forma obscenamente triste: perdera a família e todo o dinheiro nem sabia como, tinha virado sem-teto e morava dentro de uma pick-up imunda, colava os dentes podres com SuperBonder, sofria delírios e alucinações, eletrocutava-se com um taser para ter algum alívio das dores nas costas, engolia comprimidos de Ritalina aos punhados. Previsivelmente, Webster morrera de infarto, o que Omalu logo constatou em sua autópsia.
Mas o que Omalu de fato estava procurando era outra coisa: o motivo para a loucura tão estrondosa e tão prematura de Mike Webster. Sua primeira hipótese era a “demência pugilística” – o conjunto de danos neurológicos que acomete alguns boxeadores em razão dos incontáveis golpes na cabeça. Jogadores de futebol americano, porém, usam capacetes, e o cérebro de Webster realmente aparentava estar intacto, em nada semelhante ao de boxeadores vítimas da síndrome. A análise do tecido cerebral ao microscópio, contudo, revelou coisa muito diferente – e colocou Omalu em rota de colisão com a mais poderosa entidade desportiva americana, a NFL, ou National Football League.
O que Omalu encontrou foram acúmulos monstruosos de proteína tau (relacionada também ao mal de Alzheimer). Vários anos e vários cérebros de jogadores enlouquecidos depois, ele conseguiu provar de forma a não deixar dúvida que as colisões constantes de cabeça contra cabeça provocam choques rotatórios que vão esgarçando o tecido cerebral e abrindo espaço para esses acúmulos de proteína defeituosa. Se não usassem capacetes tão rijos, os jogadores ironicamente estariam muito mais protegidos: até a década de 60, quando eles usavam só um gorro de couro para proteger as orelhas, eles não enfiavam a cabeça no jogo – muito menos com a violência que o fazem hoje em dia.
Como história, a de Bennet Omalu é de pegar e não largar: é uma história do impacto direto, imediato e visível da ciência sobre a vida humana. E é também uma história de obsessão, de senso de justiça, da resistência frente a ataques de força bélica. A NFL gere um negócio multibilionário, e a última coisa que interessa a ela é que digam que o esporte que ela representa está matando os esportistas – ou seja, os ídolos do público. E matando-os de forma cruel, indigna, miserável. Em vez de assimilar as descobertas de Omalu para assim proteger esses ídolos, a NFL fez o de sempre nesses casos: procurou de todas as maneiras desacreditar Omalu. Na verdade, exterminá-lo profissionalmente.
Do jeito que a jornalista Jeanne Marie Laskas narrou essa história, em um artigo de 2009 para a revista GQ, já se pode ver o filme que ela daria: uma coisa tensa, nervosa, eletrizante, mais ou menos como O Informante, aquele filme memorável com Russell Crowe e Al Pacino sobre como um ex-executivo da indústria do tabaco provou que os fabricantes de cigarros estavam carecas de saber que seu produto matava os clientes, porém negavam, negavam e negavam. Mas nem Will Smith é Russell Crowe, nem o diretor Peter Landesman chega perto do Michael Mann de O Informante. Russell Crowe gosta de se atracar com um personagem, chacoalhá-lo e achacá-lo até ele entregar tudo que tem; já Will Smith pode ser um ótimo ator, sim, mas quer antes de tudo ser amado – quer seduzir, cativar e encantar. Seu Bennet Omalu tem uma inocência quase infantil, e o hábito de levantar os olhos ao céu, como quem fala com Deus naquele sotaque cantado e tão gracioso com que os nigerianos costumam falar inglês. Às vezes, seus olhos ficam cheios d’água. E, quando está indignado, ele fala com um fogo santo; é um justo no coração.
É uma interpretação ruim? Não – mas é uma interpretação confortável, feita para conquistar, na qual todas as arestas foram aparadas e todos os contornos foram tornados suaves. Contraste-se esse Bennet Omalu do filme com o verdadeiro Bennet Omalu, que pode ser visto em várias entrevistas disponíveis no YouTube. Se o Omalu de verdade tem essa alegria doce que Will Smith dá a ele, ela deve ser para benefício de quem o conhece pessoalmente; falando com jornalistas, ele é sempre polido, mas é comedido, sorri pouco e tem algo duro logo sob a superfície – uma amargura, e um quê de orgulho ao qual tem todo o direito. Quando explica a um entrevistador que nasceu durante a guerra entre Nigéria e Biafra, entrou na faculdade de medicina aos 15 anos e formou-se aos 21, ele quer dizer uma outra coisa: que já nasceu vencendo coisas que derrotariam a maioria, que é brilhante, que é de uma persistência incomum – e que se ressente da maneira como, por ele ser africano, foi tão fácil à NFL fingir que nem ele nem sua pesquisa existiam.
É evidente que as pessoas que financiam, produzem, dirigem e protagonizam um filme têm todo o direito de fazer dele o que bem entendem. É uma bobagem sair do cinema dizendo “não gostei porque não era o que eu esperava”, ou “deveriam ter feito diferente” – não é raro que o prazer de um filme esteja justamente aí, no fato de ele ir contra as expectativas. Mas, tendo ficado curiosa a respeito do verdadeiro Omalu (e, sim, aí está um mérito indiscutível de Will Smith) e procurado mais informações sobre ele, deparei com um personagem bem mais áspero, complicado – e interessante. É lógico que um santo vai enfrentar até os gigantes mais terríveis em nome do bem que sua causa pode proporcionar; é o que os santos fazem. Já os homens, quando estão sendo caluniados, pondo a família em risco, tirando dinheiro do próprio bolso (à ordem de 100 000 dólares, uma fortuna para o então servidor público Omalu) e dando murro em ponta de faca – aí a decisão de prosseguir no trabalho que é a fonte de tanto dissabor é dura, conflituosa, desgastante. O Omalu de Will Smith, porém, nunca titubeia. Fica magoado, mas segue impávido, com o apoio de outras pessoas de bem, como o patologista-chefe de Pittsburgh, Cyril Wecht (Albert Brooks, a única pessoa no filme que parece de verdade), o médico Julian Baines (Alec Baldwin) e sua mulher, Prema (Gugu Mbatha-Raw) – e como o filme perde tempo com o namoro e o casamento de Omalu e Prema.
Daí a pergunta: para Will Smith, o que vem antes? Ser ator ou ser astro? Se a história de Omalu não terminasse em vitória, com sua pesquisa reconhecida e ele próprio laureado como um representante dos “verdadeiros valores americanos”, ele teria se interessado assim mesmo em interpretar o neuropatologista nigeriano? De novo faço um paralelo com O Informante: a indústria do tabaco foi colocada sob fogo cerrado em grande parte por causa das denúncias de Jeffrey Wigand, que Russell Crowe interpreta – mas a vida de Wigand, essa virou uma ruína. Wigand não foi recompensado pelo que fez, foi aniquilado. Will Smith teria abraçado um personagem como Wigand, que termina obeso, sozinho, amargo, ostracizado? A resposta é: muito provavelmente não.
Basta conferir o histórico de Smith no drama (excluo os filmes de ação e as comédias românticas porque nesses casos o fator principal é mesmo o apelo de Smith como astro). Em seu primeiro papel dramático, em Seis Graus de Separação, de 1993, Smith fez o que nunca mais faria depois: uma fraude, um rapaz que usa charme (o que ele sempre teve em quantidades fartas), sexo e adulação para enganar gente branca e rica. Smith arrasava em Seis Graus, mas imediatamente se afastou desse tipo de papel mais ambíguo e menos positivo. Daí para a frente, fez Ali, À Procura da Felicidade, Eu Sou a Lenda – incluo-o na lista porque boa parte desta ficção científica é, sim, um drama –, Sete Vidas e agora Um Homem Entre Gigantes. Em todos eles, os personagens de Smith sofrem o diabo, mas prevalecem. Saem por cima, ou se redimem, ou provam seu valor.
Smith, enfim, usa seu talento como ator para confirmar seu status como astro. O problema é que sua carreira tem seguido o curso natural da carreira dos astros: seu apelo já está longe de ser o que era na década de 90 e primeira parte da década de 2000. Até na comédia romântica ele perdeu muita tração: em 2005, Hitch – Conselheiro Amoroso fez 368 milhões de dólares na bilheteria mundial, ou 446 milhões em valores atualizados. No ano passado, Golpe Duplo fez menos de 160 milhões. Se não quiser se diluir até se tornar insubstancial, Smith precisa rever a ordem dos fatores e alterar sua ótica. Tem de se concentrar em ser ator, simplesmente. O resto, se vier, virá.
Trailer
UM HOMEM ENTRE GIGANTES
(Concussion)
Estados Unidos/Austrália/Inglaterra, 2015
Direção: Peter Landesman
Com Will Smith, Alec Baldwin, Albert Brooks, David Morse, Gugu Mbatha-Raw, Stephen Moyer, Arliss Howard, Eddie Marsan, Adewale Akinnuoye-Agbaje, Paul Reiser
Distribuição: Sony Pictures