Em “Tully”, Charlize Theron prova (de novo) que é um fenômeno
Sempre excelente, a atriz às vezes arrasa de vez – como neste misto de drama e comédia sobre uma mãe que está caindo de cansaço
Assistindo a Tully, eu não sabia se sentia mais pena ou admiração pela protagonista Marlo, mãe de uma menina e um menino – ele, com um diagnóstico vago de autismo – que está para dar à luz o terceiro bebê. Interpretada por Charlize Theron com uma variedade infinita de sentimentos, Marlo já entrou na licença-maternidade mas, mesmo sem ter de sair para o trabalho todo dia, está meio doida com a barriga de nove meses, as duas crianças, a casa e o marido boa-gente porém distraído do corpo-a-corpo doméstico. Como a maioria das mulheres americanas de classe média, Marlo não tem empregada, faxineira, babá nem avó que dê uma força de vez em quando; tem ela e ela mesma. Charlize é tão boa que não transforma só a si própria para fazer a personagem: ela transforma até o ar à sua volta, envolvendo Marlo numa nuvem de cansaço. Com o nascimento de Mia, o esgotamento chega ao insuportável. Assim como o diretor Jason Reitman resumia a rotina de viagens ininterruptas de George Clooney em uma montagem brilhante em Amor Sem Escalas, aqui ele mostra o massacre das fraldas sujas, da amamentação e do acorda-e-dorme-e-acorda do bebê em um par de minutos que deixam até o espectador na lona. Marlo conclui que vai enlouquecer: finalmente, pega o telefone da babá noturna com que seu irmão rico quer presenteá-la, nem que seja só por essas primeiras semanas da vida de Mia.
Tully (Mackenzie Davis), a babá, bate à porta às 10 e meia da noite e, antes mesmo de se sentar no sofá com Mia no colo, já fez Marlo se sentir como Cinderela no dia em que conheceu a fada madrinha. Tully assume o controle da situação como quem nasceu para isso: manda Marlo para a cama, conforta o bebê e, enquanto todos dormem, assa muffins ou limpa a casa de cima a baixo – as crianças nem reconhecem mais o lugar. Tully adora conversar com Marlo, e ouvi-la, acalmá-la e fazê-la feliz. Marlo renasce. Ao mesmo tempo, conviver com essa espécie de versão passada de si mesma desperta algumas angústias e nostalgias profundas. Assim como Charlize (que ganhou uns 20 quilos para o papel, sem que nenhum deles diminua a sua beleza – bandida!), Mackenzie Davis, de 31 anos, é linda, magra e loira, de olhos verdes faiscantes. Conhecida pela série Halt and Catch Fire, por Perdido em Marte e pelo episódio San Junipero de Black Mirror, Mackenzie é em geral escalada para personagens com um quê de introvertido e antissocial, mas aqui ela é toda empatia, como um doce que não enjoa.
O coração do filme, entretanto, é Charlize, evidentemente – que se junta pela segunda vez a Jason Reitman e à roteirista Diablo Cody. A dupla inaugurou sua parceria com Juno, sobre um bebê que entrava cedo demais na vida da adolescente interpretada por Ellen Page. Na sua colaboração seguinte, Jovens Adultos, chamaram Charlize para encarnar uma mulher imatura e egoísta que nem a beleza nem a ambição compensaram na medida desejada, e que se manda a jato para sua cidade natal quando fica sabendo que um ex-namorado se casou e acabou de ter um filho (ele deve estar infelicíssimo, supõe a protagonista). É raro Charlize não ser excelente, mas ela se supera sempre quando o personagem a) é completamente badass, como em Mad Max: Estrada da Fúria e Atômica; b) requer um movimento maior que o normal para tocar de alguma forma o espectador. É o caso da quebradiça e patética Mavis de Jovens Adultos, da abrutalhada Aileen Wuornos de Monstro – Desejo Assassino (pelo qual ela ganhou o Oscar) ou da exausta Marlo de Tully. Não chovem roteiros por aí sobre os dramas de ter de trocar fraldas e bombear leite do peito durante as 24 horas do dia, e sobre o impacto que a rotina sobrecarregada da vida familiar exerce sobre o senso de identidade de uma mulher que não consegue achar um ponto de equilíbrio entre querer muito o que tem e querer sumir na noite sem dar notícias. Mães atarefadas, enfim, não são assunto considerado atraente. Juntamente com Reitman e Cody, Charlize prova que ele pode ser não só atraente, como dilacerante, engraçado, lindo e imensamente comovente. (E fica assim completamente perdoada por ter me levado a assistir àquela fria que é Gringo – Vivo ou Morto.)
Trailer
TULLY (Estados Unidos, 2018) Direção: Jason Reitman Com Charlize Theron, Mackenzie Davis, Ron Livingston, Mark Duplass, Elaine Tan, Gameela Wright, Lia Frankland, Asher Miles Fallica Distribuição: Diamond |