Séries se tornam trincheiras de resistência às ideias neofascistas
'Watchmen', da HBO, entra na guerra pela mente dos espectadores com uma concepção espetacular de entretenimento — e provocações políticas
No escuro, o menino negro assiste hipnotizado à história do xerife negro que denuncia um homem da lei corrupto ao mesmo tempo que impede a multidão de linchá-lo: “Em Tulsa, Oklahoma, vai haver justiça”, proclama o personagem. Também do lado de fora do cinema se está em Tulsa — mas as ruas foram tomadas por uma caçada sangrenta aos negros, que inutilmente procuram se proteger ou então tentam fugir, como os pais do menino. Trata-se de uma sequência acachapante, filmada de dentro da refrega e na altura do olhar de uma criança: um tumulto de corpos, tiros, explosões e cores. E, então, salta-se de 1921 para o presente, em que um policial negro, o rosto coberto por uma máscara amarela, para o motorista branco de uma caminhonete na estrada deserta. De novo, tem-se uma cena de força singular — mas, agora, pela maneira como a tensão se acentua e se distende, para então irromper de forma repentina: Watchmen, a série que estreia neste domingo, 20, às 22 horas, na HBO, é espetáculo no seu mais hábil e excitante, e é também comentário no seu mais provocativo e ousado.
É, ainda, um lance sagaz de Damon Lindelof, criador, roteirista e produtor também de Lost e The Leftovers. Em vez de recriar na tela o célebre quadrinho do inglês Alan Moore (tarefa que derrotou o diretor Zack Snyder dez anos atrás) e submeter-se às objeções dos fãs da graphic novel, Lindelof aqui coloca o universo de Moore no passado para desdobrá-lo nos dias de hoje como um enredo inédito, numa Tulsa que novamente desperta para a violência três anos depois de ter sufocado uma guerra entre as forças policiais da cidade e o grupo de supremacistas brancos que se autodenomina 7th Calvary.
Como consequência dessa guerra, os policiais de Tulsa, na maioria negros, passaram a atuar mascarados, para que eles e suas famílias não se tornem alvos do crescente movimento fasci-racista. Os métodos das forças de segurança também escalaram proporcionalmente. O chefe de polícia Judd Crawford (um espetacular Don Johnson) e seu departamento são uma lei em si mesmos, e contam com agentes que sustentam uma fachada de cidadãos comuns para atuar com a desenvoltura — e a latitude — que desejem. É o caso de Angela Abar, que pretensamente se aposentou depois de ter sido ferida na chamada “Noite Branca”, três anos antes, e virou padeira. Angela e seu marido, negros, têm três filhas brancas, e não seria difícil compreender por que ela prefere agir nas sombras. Mas vê-se que Angela, soberbamente interpretada por Regina King, terminou por gostar até demais dessa imposição. “Tenho faro para supremacistas brancos, e este sujeito aqui cheirava a cândida”, é como ela justifica a prisão irregular e por conta própria de um homem que será interrogado em uma cela hermeticamente fechada (e, sim, ele é mesmo um supremacista branco).
Se Watchmen é filmada com a ambição de grande cinema (só a trilha assinada por Trent Reznor e Atticus Ross, colaboradores habituais de David Fincher, já bastaria para elevá-la a esse patamar) e é nada menos do que sensacional como entretenimento, é na maneira como fervilha de ideias e provocações que a série mais se destaca. Em qualquer cena, mesmo a mais banal, a atmosfera é escorregadia, carregada — esta é a nova América (e o novo mundo), adversária e antagônica, apressada em redefinir os conceitos de ética e moralidade. E esta é a nova televisão: enquanto o cinema, preocupado com as megabilheterias, apenas esboça certos temas, as séries encampam com voracidade o debate social e político. Praticamente não há estreia ou temporada de continuação lançada no último par de anos que escape a essa inquietação.
Algumas o fazem de forma ostensiva. Por exemplo, Olhos que Condenam, que trata do racismo institucional ao abordar o escandaloso caso da prisão de cinco adolescentes negros, em 1989, por um crime do qual eles não haviam passado nem perto. Ou The Politician, que usa o ambiente da high school para destrinchar a ambição política, o sistema eleitoral americano e, em um episódio perfeito, a indiferença nefasta do eleitorado. Ou ainda a inglesa Years and Years, que prevê para a década vindoura uma Europa conflagrada por crises financeiras, ódio aos imigrantes e tentações populistas. E, claro, nenhuma série é tão militante quanto O Conto da Aia, ambientada num futuro próximo que lembra muito a Nova Inglaterra fundamentalista do século XVII.
O que mais chama atenção, entretanto, é a quantidade de séries cuja premissa nem sequer tangencia esses assuntos mas que agora buscam oportunidades de abordar os males contemporâneos. Em sua temporada final, Orange Is the New Black, passada em uma prisão feminina, tratou quase que só do sofrimento causado pela separação de famílias de imigrantes ilegais. The Good Fight, protagonizada por advogados de alto calibre de Chicago, mergulhou fundo na briga suja das redes sociais. Chernobyl, sobre a explosão da usina nuclear ucraniana em 1986, alertou para a manipulação dos fatos por um governo avesso à honestidade. A manobra mais arriscada, e mais elegante, foi a da quinta temporada da ultracult Peaky Blinders: alçado do gangsterismo das primeiras décadas do século XX a um assento no Parlamento, o personagem de Cillian Murphy vê a si mesmo como um demônio. Mas, pela primeira vez na vida, sente medo verdadeiro ao conhecer um homem que pressente ser muito mais perigoso que ele — o baronete Oswald Mosley (1896-1980), que no início dos anos 30 fundou a União Britânica de Fascistas. Em uma interpretação magnífica de Sam Claflin, o personagem verídico entra no enredo fictício tão insidiosamente — e inexoravelmente — quanto o medo do obscurantismo passou de algo vago a uma possibilidade concreta. Watchmen (e toda a TV) tenta brecar esse avanço.
Publicado em VEJA de 23 de outubro de 2019, edição nº 2657