Um cavalheiro perfeito
Hoje, dia 27 de fevereiro, faz um ano que Leonard Nimoy morreu, aos 83 anos. Para marcar a ocasião, aí vai uma entrevista que fiz com ele em 2003, quando ele estava para vir de visita ao Brasil. Durante os cinquenta minutos que passei com ele ao telefone, Nimoy se mostrou invariavelmente inteligente, afável, espirituoso, direto e discreto. Falou de tudo: de Star Trek (claro) e trekkers, de alcoolismo, de amizade, de casamento, de judaísmo, do que aprendeu com Spock. Foi um prazer ouvi-lo. Não é por acaso que ele foi tão querido pelos fãs e pelas pessoas com as quais trabalhou. Com a palavra, então, o primeiro (embora não mais único) Sr. Spock.
Ser ou não ser Spock
Há 37 anos convivendo com o personagem de Jornada nas Estrelas, seu intérprete acha que ele lhe trouxe um misto de bênção e castigo
Para as gerações que assistiram a Jornada nas Estrelas na televisão ou no cinema, ele é a personificação da temperança, do equilíbrio e da razão – qualidades raramente encontradas em abundância nos seres humanos, mas típicas dos vulcanos, como o Sr. Spock. Desde 1966 associado ao personagem, o ator americano Leonard Nimoy assegura ser bem mais inquieto do que sua versão de orelhas pontudas. Mas tem em comum com ela os modos distintos e a clareza de expressão. Nascido em Boston, numa família de imigrantes do Leste Europeu, Nimoy começou a atuar aos 8 anos.
Fez teatro, televisão e cinema e teve uma passagem pelo Exército antes de, aos 35 anos, ganhar o papel de segundo em comando da nave Enterprise. Desde então, diz, nunca passou um dia sem emprego – feito raro para um ator, de qualquer planeta. Aos 72 anos, e com uma carreira que inclui incursões pela poesia, pela fotografia e pela direção, Nimoy prepara-se para vir ao Brasil, na próxima semana. De Los Angeles, onde mora, ele concedeu a VEJA a seguinte entrevista.
Quantas vezes já lhe perguntaram se ter interpretado o Sr. Spock foi mais uma bênção ou um castigo?
Muitas, muitas vezes. E o certo seria dizer que ser lembrado como Spock é um misto de bênção e castigo. Nunca reclamei a esse respeito porque desde setembro de 1966, quando Jornada nas Estrelas foi ao ar pela primeira vez, nunca fiquei sem emprego – e não há muitos atores no mundo que possam fazer uma afirmação semelhante. Antes de Jornada nas Estrelas, eu vivia em busca de emprego, como a maioria dos atores. Por outro lado, não há dúvida de que perdi várias oportunidades profissionais por estar tão fortemente associado a um personagem como Spock. Mas esses são os ossos desse ofício.
Que tipo de oportunidade o senhor acredita ter perdido?
Só posso especular a esse respeito. Mas nunca recebi um convite para atuar numa comédia de situações, por exemplo. Normalmente, os papeis que me são oferecidos têm alguma ligação com o personagem pelo qual fiquei conhecido. Em uma ou outra ocasião, consegui escapar a essa fôrma. Interpretei, por exemplo, o marido da primeira-ministra de Israel Golda Meir num filme para a televisão, com Ingrid Bergman. O que aconteceu é que o produtor me conhecia bem, e sabia que eu era mais versátil do que me julgavam ser. Daí todos os resenhistas terem escrito que minha escolha para o papel fora surpreendente, o que não deixou de ser divertido e compensador.
Jornada nas Estrelas foi ao ar pela primeira vez, entre 1966 e 1969, sem grande sucesso. Como o senhor vê o fato de ela ter se transformado inesperadamente em objeto de culto?
Quando tiraram a série do ar, no fim da terceira temporada, fiquei aliviado. Nosso trabalho já não se comparava, em qualidade e criatividade, ao que havíamos feito nas duas primeiras temporadas, e do qual tenho muito orgulho. Andávamos à deriva, o que me fez pensar que seria melhor não continuar assim. Quando se filma uma série, espera-se pelo novo roteiro a ser filmado, a cada semana, com esperança e impaciência. Se ele se revela sempre desapontador, essa é uma experiência terrível, que mata qualquer entusiasmo. Daí seguem-se aquelas conversas dolorosas com os produtores, que por sua vez não aguentam as reclamações dos atores. Por isso achei, quando Jornada nas Estrelas foi cancelada, que em dois ou três anos ninguém mais se lembraria de nós. Em vez disso, a série tomou uma nova vida. Achei intrigante, e nem sonhava que sete ou oito anos depois voltaríamos àqueles personagens no cinema.
Quando foi que o senhor se deu conta de que os trekkers haviam transformado Jornada nas Estrelas num fenômeno cultural?
Aonde quer que eu fosse, só me perguntavam sobre a série, ainda que eu estivesse lá para promover algum outro trabalho. Eu estava fazendo muito teatro na época, e isso era frustrante. Em meados dos anos 70, quando essa coisa das convenções de trekkers começou, atraindo multidões, me dei conta de que fazia parte de um fenômeno. Fomos a uma convenção em Chicago onde 10 000 pessoas eram esperadas. Mais de 30 000 apareceram, e a polícia e os bombeiros tiveram de fechar o hotel. Todos os elevadores e escadas rolantes quebraram, tal o movimento.
Como era o relacionamento entre o senhor e os outros membros do elenco de Jornada nas Estrelas? Vocês chegaram a se tornar amigos íntimos?
Sou amigo de William Shatner, que interpretava o capitão Kirk. Não nos vemos com freqüência – às vezes saímos para um jantar a quatro com nossas esposas, ou nos encontramos em algum evento. Mas o considero bastante próximo. Tenho amizade também por outros atores, embora só nos vejamos em situações de caráter profissional.
Diz-se que havia um clima de animosidade entre o elenco, e especialmente com relação a Shatner, por ele ser o comandante da Enterprise.
A imprensa gosta de drama e conflito. Convivíamos num ambiente de muito profissionalismo.
Dois anos atrás, numa entrevista com Shatner, o senhor disse que começou a abusar do álcool na época em que Jornada nas Estrelas estava na televisão. O senhor diria que foi em decorrência das pressões da série?
Não. Muitas outras pessoas têm problemas com o álcool, e nenhuma delas trabalhou em Jornada nas Estrelas. O que acontecia é que todos os dias, depois das filmagens, eu bebia um drinque – ou dois, ou três, ou mais. Isso nunca interferiu no trabalho, e por isso mesmo demorei a reconhecer que tinha uma doença. Mas chegou o dia em que percebi que, mesmo quando queria beber menos, eu não conseguia. Eu havia perdido o controle da quantidade. O mesmo se passava com o cigarro. Tive de deixá-lo porque não conseguia fumar pouco. Era sempre muito. Felizmente, colocaram-me em contato com um programa de reabilitação. É provável que eu tenha uma personalidade de viciado. Não consigo fumar ou beber de forma controlada. Por isso tive de abandonar os dois, primeiro o tabaco e depois o álcool. O cigarro foi o mais difícil.
Há quanto tempo o senhor não bebe?
Faz quinze anos que não tomo um drinque. E não sinto a menor falta. Mesmo quando outras pessoas bebem perto de mim, isso não me incomoda em nada.
Alguns anos atrás, Shatner causou comoção ao aparecer no programa humorístico Saturday Night Live e dizer aos fãs, ainda que em tom de brincadeira, que parassem com a idolatria e fossem “viver a vida”. Como o senhor se sente a respeito dessa forma tão extrema de adoração que os trekkers devotam a Jornada nas Estrelas?
William tem um senso de humor único. Mas, ao longo dos anos, descobri que há trekkers de todos os matizes. É verdade que há uma parte deles que é extremamente devotada, e vai às convenções vestindo fantasias estranhas de klingons ou vulcanos. Por outro lado, não passa um dia sem que alguém venha me falar sobre o impacto que Jornada nas Estrelas teve em sua vida. São pessoas que dizem ter sido levadas à ciência, ou ao magistério, por causa da série, e que levam uma vida rica e completa. Algumas dessas pessoas também vão às convenções, muitas vezes em companhia de mulher e filhos. Mas obviamente essa gente não interessa aos repórteres que cobrem esses eventos. Todas as câmeras estão voltadas para as pessoas em fantasias bizarras. De modo que acho que a impressão que se tem desse tipo de encontro não é totalmente fiel à realidade.
O senhor assiste às reprises de Jornada nas Estrelas?
Não.
E seus filhos e netos, eles gostam da série?
Sim, eles são fãs, e têm muito orgulho da minha participação nela.
Com Jornada nas Estrelas, o senhor cruzou a fronteira que separa as celebridades dos ícones. Como isso mudou sua vida?
Não me vejo como um ícone, e sim como um profissional que vive do seu trabalho e se sente grato pelas oportunidades que tem. É verdade que durante algum tempo – hoje não mais – isso constituiu um problema físico. Era impossível ir a um lugar onde houvesse muita gente, sob pena de iniciar uma comoção pública. Certa vez fui convidado por Elton John para o encerramento de uma turnê, no Madison Square Garden, em Nova York. Quando entrei no auditório, as luzes ainda estavam acesas. Em dois minutos, já havia se formado uma multidão à minha volta, de pessoas que pediam autógrafo ou queriam tirar fotografia. Tive de ser levado aos bastidores e esperar até que o show começasse para poder voltar à minha poltrona. Com o tempo, aprende-se a evitar situações que dêem margem a esse tipo de embaraço.
O senhor tem muito orgulho de sua origem judaica. Mas, recentemente, teve problemas com religiosos ortodoxos por causa do seu livro de fotografias, Shekhina, em que modelos femininas aparecem vestidas em objetos rituais tradicionalmente masculinos, como o xale de orações. O senhor acha que foi mal interpretado?
Não. Acho que as pessoas que se sentiram incomodadas com o livro entenderam o que eu fiz. Elas só não querem que eu o faça. A razão, acho, é mais cultural do que religiosa: os ortodoxos têm dificuldade em aceitar essa ideia do aspecto feminino da divindade, que é o que significa a palavra shekhina. A cultura judaica é predominantemente masculina. Todos os ritos religiosos são desempenhados por homens. Às mulheres, cabe apenas assistir às cerimônias. Além disso, elas devem ser mantidas separadas. Meu livro eleva as mulheres à mais alta esfera do judaísmo, e isso perturba alguns homens.
Pode-se dizer, então, que o senhor foi movido por uma visão feminista.
Eu diria que sou um feminista inconsciente. Não milito por uma causa, mas meu trabalho tem esse aspecto feminista. Acredito na igualdade, e também que este seria um mundo melhor se as mulheres dividissem igualitariamente com os homens o processo de tomada de decisões. Acho que estamos num mundo desequilibrado, e talvez parte do caos em que vivemos hoje se deva a essa abordagem cultural desigual. Quando comecei Shekhina, pensei em fazer algo que fosse inspirador para mim, e que tivesse um forte elemento espiritual. Mas às vezes é o público que revela a você, o artista, aquilo que você realizou. E isso aconteceu comigo. Minha intenção não foi provocar. Mas, mal o livro foi publicado, a confusão começou. Por exemplo, fui desconvidado de um jantar da Federação Judaica em Seattle no qual deveria falar sobre Shekhina. A agência de notícias Associated Press divulgou o ocorrido e, de uma hora para outra, estava-se falando nisso no país inteiro. Algumas sinagogas mais liberais começaram a me convidar para palestras, e já fiz umas dezoito delas em várias cidades.
A saudação típica do Sr. Spock, com os dedos da mão separados, também tem origem religiosa, não é?
Esse é um gesto feito pelos rabinos num certo momento do serviço religioso, e simboliza o nome do Todo-Poderoso. Quando eu era criança, ele me chamava muito a atenção. No momento em que foi preciso criar uma saudação para o Sr. Spock, o gesto me voltou à mente. Curiosamente, nunca um ortodoxo implicou com o uso ficcional dessa saudação.
O senhor não costuma fazer comentários sobre questões políticas que envolvam judeus ou o Estado de Israel.
Já fui muito ativo em questões políticas gerais, como eleições para a Presidência e o Congresso, ou no movimento pelos direitos civis liderado por Martin Luther King. Mas, como judeu, não sou politicamente ativo. Arrasa-me ver o ciclo de vingança e violência que aflige o Oriente Médio, mas prefiro me manter calado a esse respeito porque não sou um profundo conhecedor do tema. Talvez isso seja um erro e caiba a cada um de nós tentar encontrar uma solução.
O senhor é um diretor com boas credenciais e alguns sucessos, como Jornada na Estrelas IV – A Volta para Casa e Três Solteirões e Um Bebê, mas há tempos não se dedica à direção. O senhor perdeu o interesse?
Não quero mais dirigir. Tenho uma vida nova, na qual sou extraordinariamente feliz. Sou casado pela segunda vez. Meu primeiro casamento durou 33 anos, mas cheguei a um ponto em que já não era possível levá-lo adiante. Tenho sido muito feliz desde então. Por isso evito compromissos profissionais longos. Minha mulher e eu viajamos muito — ela é curadora no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles e somos também colecionadores de arte. A fotografia é algo a que posso me dedicar sem que isso prejudique nossa vida em comum. Mas já não tenho interesse em abrir mão de um ano inteiro da minha vida para dirigir um filme.
O senhor escreveu dois livros muito comentados pelos fãs. O primeiro se chamava Eu Não Sou Spock, e o segundo, Eu Sou Spock. Qual título é o mais verdadeiro?
Não parece fazer muito sentido, não é? Mas o estranho é que os dois são verdadeiros. Chamei o primeiro livro de Eu Não Sou Spock porque um dia, num aeroporto, um menino pequeno se aproximou de mim e, apesar do que sua mãe lhe dizia — que eu era o Sr. Spock e ele me via todas as semanas na televisão -, ele simplesmente não conseguiu me reconhecer. Isso me fascinou. Ali, no aeroporto, eu era um sujeito qualquer, não Spock, e o menino sabia disso. Os fãs, claro, não gostaram muito do título. Anos mais tarde, percebi que depois de tanto tempo envolvido com o personagem eu havia absorvido algumas características dele. Spock me ensinou a ter mais equilíbrio emocional, por exemplo. Daí o segundo título. E assumi que, para muita gente, eu sou Spock. Até porque ninguém mais é.