‘Rambo — Até o Fim’: bronco retrô
Sylvester Stallone quer homenagear a si mesmo com novo filme do personagem — que já não tem nada de bom a oferecer faz muito tempo

Sylvester Stallone é apegado aos seus personagens: já interpretou o boxeador Rocky Balboa em oito ocasiões, e agora encarna John Rambo pela quinta vez, em Rambo — Até o Fim (Rambo: Last Blood, Estados Unidos, 2019), em cartaz no país. Mas, se Rocky foi ganhando sabedoria e contornos mais suaves nos seus três últimos filmes, Rambo se mostra refratário à evolução — dramatúrgica, espiritual ou de qualquer outra ordem. O ex-boina-verde estreou em 1982, como um veterano da Guerra do Vietnã tão traumatizado que abdicara da vida na civilização mas nem assim escapava das vicissitudes dela — era usado como máquina de matar pelos superiores militares e tratado como aberração por um xerife, o que o levava a perder o controle e declarar guerra contra todos. Intitulada First Blood no original (quem primeiro derrama sangue não pode se queixar de retaliações), a aventura era daqueles filmes “de macho” típicos da era Reagan, mas era também decente como cinema — pelo menos até a meia hora final, quando o protagonista exibia sua capacidade surreal de, sozinho, derrotar pelotões inteiros. Esse foi o fio puxado nas três continuações, o do ex-soldado letal e disparatadamente invencível que entende a justiça como a devolução da crueldade em dobro, e com troco de sobra. Rambo, enfim, virou um bronco que falava ao lado mais tosco de espectadores interessados em duas horas de entretenimento rústico. Mesmo por esses parâmetros, entretanto, Até o Fim parece boçal.
O efeito é acentuado pela reverência com que o roteiro — coassinado por Stallone — trata o personagem (a auto-homenagem do fim é constrangedora) e tenta restabelecer suas motivações com citações heréticas ao clássico Rastros de Ódio. Na abertura, dezenas de policiais procuram, numa montanha, três turistas ameaçados pela tromba-d’água que já começa a despencar. Mas é claro que é Rambo quem os encontra — e então, tendo entregado uma sobrevivente aos socorristas, não se perdoa por não ter conseguido salvá-los todos: Rambo não é homem de comemorar vidas poupadas se há vidas perdidas a remoer. De volta à sua fazenda, no sopé da serra do Arizona, ele faz silêncios constrangidos quando a empregada interpretada por Adriana Barraza, de Babel, diz quanto foi importante ele tê-la deixado ficar ali para criar sua neta, a jovem Gabrielle (Yvette Monreal): Rambo não é o tipo de sujeito que se sinta à vontade com demonstrações de gratidão. Prefere refugiar-se no pasto ensinando montarias a fazer volteios como os dos cavalinhos de Viena — uma oportunidade para que Sylvester Stallone dê mais um lustro no seu ego exibindo habilidades até aqui ignoradas (e, neste contexto, bastante insólitas). Findo o dia, ele se recolhe não à casa ampla, mas aos túneis lúgubres que cavou sob a pradaria: ele continua traumatizado demais para usufruir algum convívio ou conforto. Só perto de Gabrielle, a quem considera uma filha, ele relaxa.
E é claro, portanto, que o mundo de Rambo desaba no momento em que a garota cruza a fronteira, ali pertinho, para tentar conhecer seu pai verdadeiro: todos os perigos mais horripilantes que o México tem a oferecer fazem mira nela (nos filmes de 1985, 1988 e 2008 ele ia detonar, respectivamente, no Vietnã, no Afeganistão e na Tailândia). Ao cabo dos 89 minutos de Até o Fim, o contingente de malfeitores mexicanos terá diminuído drasticamente, e por meios grotescos. Aos 73 anos, Stallone está em idade clinicamente desaconselhável para tantas façanhas radicais, mas Rambo nem sentiu o tempo passar: chegou igualzinho da era Reagan à era Trump.
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653