Os Eleitos: se você nunca viu, não sabe o que está perdendo
Aviões! Espaço! Elenco sensacional! Não é por acaso que as 3h13 de filme passam voando

Na semana passada, morreu, aos 95 anos, John Glenn, uma das figuras mais emblemáticas do programa espacial americano: terceiro astronauta da missão Mercury a ir ao espaço e o primeiro a orbitar a Terra – em 20 de fevereiro de 1962 –, Glenn foi combatente na II Guerra e na Guerra da Coreia, piloto de teste dos Marines e senador durante 24 anos, a partir de 1974. Era um cara legal mesmo: nos anos 60, liderou uma comissão bipartidária em prol do controle de armas. Era também certinho, patriótico, honesto e imensamente carismático – o herói de que a Nasa necessitava naquele começo da corrida espacial, em que várias vezes apanhou dos adversários russos (e, se é para falar em pioneirismo, não vamos deixar de mencionar os valentes cosmonautas Gagarin e Titov).
Glenn é, também, um dos protagonistas de um filme hiper ultra especial que, em homenagem a ele, decidi rever pela enésima vez: Os Eleitos, escrito e dirigido por Philip Kaufman numa daquelas ondas de inspiração que às vezes acometem um cineasta quando ele encontra o assunto da sua vida. Ou os assuntos, no plural; a sacada verdadeiramente magistral do livro homônimo de Tom Wolfe em que o filme se baseia (e a que Kaufman faz jus, com honras) é começar por um outro tipo de pioneirismo, meio doido e altamente individualista – a obsessão da Força Aérea americana e de um grupo de pilotos de teste reunidos na Base de Edwards, no deserto da Califórnia, em quebrar a barreira do som chegando a Mach 1 (ou 1.225 km/h ao nível do mar; a unidade mach varia em função da altitude e temperatura). O herói dessa primeira parte do filme é Chuck Yeager, que Sam Shepard interpreta de maneira memorável: por fora, caubói quieto e tranquilão; por dentro, um sujeito com foco mais concentrado que o de laser. Yeager não só foi o primeiro piloto a quebrar a barreira do som – e vale dizer que nessa altura ninguém sabia dizer se um ser humano sobreviveria a tal velocidade – como estabeleceu várias outras marcas fundamentais para a aviação (aliás, ele está com 90 anos e, no ano passado, ainda deu uma pilotada num F-15). Perto do que Yeager e os outros pilotos de elite da base de Edwards faziam, ir para o espaço era, do ponto de vista técnico, uma barbada – a pilotagem era essencialmente feita em terra, a partir do centro espacial de Houston; o que o astronauta tinha de heróico de fato era saber que estava sendo catapultado rumo ao grande desconhecido no nariz de uma ogiva gigantesca e tremendamente inflamável (admito, não é pouco heroísmo).
Yeager nunca sai de cena em Os Eleitos. A segunda parte do filme é quase toda dedicada aos sete astronautas do programa Mercury (Ed Harris arrasa como John Glenn, na ótima companhia de Scott Glenn, Fred Ward e Dennis Quaid, entre outros). Mas, com muita presciência, Tom Wolfe e Philip Kaufman não tiram o olho do pessoal da Base de Edwards: o livro é de 1979 e o filme é de 1983, e o programa do ônibus espacial ainda ia a toda nessas datas, mas autor e diretor tiveram a sensibilidade de sacar que a conquista do espaço era já parte do passado, enquanto a aviação nunca vai deixar de ser essencial e estratégica. A cada nova etapa da Mercury, então, Yeager volta à cena, em mais uma façanha e em um novo contraponto. Kaufman trabalha um outro tema também: a maneira inexorável como a América da aventura e do espírito desbravador individualista foi se transformando na América do raciocínio corporativo, da decisão em comitê e do marketing como força suprema de todas as coisas. Nisso, pode-se dizer que ele e Tom Wolfe foram mais prescientes ainda.
Os Eleitos, além de ser bárbaro como reconstituição histórica – e como avaliação ponderada de um período –, é maravilhosamente bem filmado e é uma delícia de ver. Tem um ritmo tão bom que você nem percebe que ele dura 3 horas e 13 minutos (!!!). Tem passagens tão aventurosas quanto as do melhor western; trechos poéticos, como o da fogueira dos aborígines na Austrália; e cenas de um humor saborosíssimo, como a montagem com vários barulhos de água que acompanha o desespero de Scott Glenn para fazer xixi depois de horas dentro da cápsula. Para mim, pessoalmente, tem também fartura da coisa mais linda que já foi inventada: aviões – em especial, caças. Já decidi que, na minha próxima encadernação, vou voar num caça pelo menos uma vez. Mas morram de inveja: passei dois dias acompanhando a filmagem de Homem de Aço em Edwards, olhando aquela imensidão de poeira que não acaba nunca, vendo esquadrões de caças decolarem (não existe barulho mais emocionante), dando uma levantadinha do chão num Black Hawk (cortesia de um marine, que viu que eu estava babando e decidiu fazer um agrado) e pensando que ali Chuck Yeager fez coisas inacreditáveis, ali os shuttles aterrissavam na volta dos seus passeios e ali estava eu, no meio de caças, bombardeiros, cargueiros e helicópteros que, de outra forma, eu provavelmente nunca teria visto cara a cara. O Super-Homem? Perto de contar para o meu pai tudo que eu tinha feito e visto em Edwards, isso de conviver com gente de Krypton não é nada.
OS ELEITOS (The Right Stuff) Estados Unidos, 1983 Direção: Philip Kaufman Com Sam Shepard, Ed Harris, Scott Glenn, Dennis Quaid, Fred Ward, Barbara Hershey, Mary Jo Deschanel, Veronica Cartwright, Pamela Reed, Kathy Baker, Donald Moffat, Royal Dano, Jane Dornacker, Jeff Goldblum, Harry Shearer, Lance Henriksen, Scott Paulin |