O Nascimento de uma Nação
De sucesso em Sundance a figura de escândalo, os caminhos tortuosos de um diretor, seu filme e seu personagem

Se você olhar a programação dos cinemas com atenção – bastante atenção –, vai perceber que desde ontem está em cartaz em umas poucas salas dos país O Nascimento de uma Nação, do diretor Nate Parker, que foi o título mais festejado no Festival de Sundance em janeiro deste ano. Previa-se para o filme uma carreira tão ou mais premiada que a de 12 Anos de Escravidão, que levou o Oscar em 2014. Mas aí, em agosto, estourou na imprensa uma história feia: em 1999, na faculdade, Parker e seu amigo Jean Celestin (que tem um crédito de argumentista em Nascimento) foram acusados de estuprar uma colega. Parker foi inocentado da acusação. Celestin foi condenado, mas apelou e terminou sendo exonerado. A colega se matou em 2012; é impossível saber se o suicídio dela tem alguma ligação com o caso – ou mesmo se o caso é, de fato, um caso. Mas os detalhes são tão desagradáveis que não haveria como o filme resistir a eles. A bilheteria americana foi fraquíssima. De premiações, ninguém fala mais.
Alguns cineastas sobrevivem a esse tipo de suspeita. Woody Allen já foi alvo de acusações terríveis (e, ao que tudo indica, infundadas), e saiu quase incólume delas. Roman Polanski teve, para além de qualquer dúvida, relações com uma menina de 13 anos, e por isso não põe os pés nos Estados Unidos desde o fim da década de 60, para não ser preso. O episódio tingiu bastante a carreira dele, mas nem de longe a arruinou. Allen e Polanski já eram cineastas mais do que estabelecidos, e que costumeiramente investigam as facetas menos palatáveis da natureza humana. Já Parker é um diretor estreante, cujo filme condena uma das maiores imoralidades que um homem pode cometer contra outro – a escravização. Nascimento era um desses filmes para fazer a plateia se sentir mais esclarecida e virtuosa. Mas a acusação contra Parker deu um nó na cabeça do público do filme, e invalidou qualquer virtude que ele tivesse a compartilhar.
À parte tudo isso, a questão é: O Nascimento de uma Nação merece o barulho que se fez em torno dele em Sundance, quando sua honra ainda estava intacta?
O título é o mesmo de um dos maiores monumentos do cinema – o filme de 1915 de D.W. Griffith que é um dos fundadores da gramática cinematográfica. Griffith contrapunha a história de duas famílias, uma da Norte, outra do Sul, durante a Guerra Civil de 1861-1865, e tomava abertamente o partido do Sul escravocrata. Em uma sequência que hoje faz a gente ranger os dentes de vergonha, uma cidade da Carolina do Sul é tomada por soldados negros da União, e a população branca indefesa é salva pela Ku Klux Klan. É, aqueles boçais de capuz branco com furos para os olhos mesmo, os que foram até pelo menos os anos 1970 queimando e enforcando negros. Griffith era um gênio do cinema, mas não escapou de ser um homem do seu tempo e lugar: nasceu no Kentucky (que, nominalmente, foi primeiro neutro e depois controlado pela União durante a Guerra Civil. mas do qual saíram numerosas milícias pró-Confederados) em 1875, apenas dez anos após o término da guerra, quando o Sul ainda remoía o ódio pela abolição da escravatura, o sistema que fizera a sua fortuna.
É a intenção explícita do roteirista, produtor, diretor e ator principal Nate Parker neste seu filme de mesmo nome, portanto, virar pelo avesso os mitos do nascimento da nação americana, e mostrar como foi tenebroso, espúrio, violento e obsceno o parto em que ela veio ao mundo.
Nate Parker interpreta Nat Turner, filho e neto de escravos, nascido na Virgínia, em 1800, como propriedade dos Turner – uma família excepcionalmente amena no trato com seus escravos. Como em qualquer outra propriedade rural da região, a obediência era férrea, o trabalho era duríssimo, a comida era pouca e ruim e a disciplina era garantida por um capataz e, além dele, por um capitão-do-mato (Jack Earle Haley, deitando e rolando na maldade) encarregado de caçar, castigar ou executar qualquer negro que fosse visto perambulando fora de sua fazenda. Mas, na plantação dos Turner, as mulheres não eram violadas, os castigos físicos eram raros e os escravos moravam em família, em seus próprios casebres, e não numa senzala. Nat cresceu junto de Sam, o filho dos Turner, e foi alfabetizado pela dona com o propósito exclusivo de ler a Bíblia (alfabetizar escravos, aliás, era crime; mesmo uma senhora rica e branca poderia ser duramente punida por fazê-lo). Foi uma instrução breve, mas decisiva: Nat se tornou devoto e, na juventude, descobriu ter grande talento como pregador.
Quando Sam Turner (na idade adulta, Armie Hammer) assumiu o controle da propriedade – e das dívidas da família –, Nat foi encarregado de trazer dinheiro extra: Sam saía com ele pelas fazendas da região para que ele pregasse para os escravos e os persuadisse, pela palavra divina, de que o cativeiro era seu privilégio e sua obrigação. Os fazendeiros pagavam pelo serviço, Sam ficava com o pagamento. E, no princípio, chocava-se tanto quanto Nat com os horrores indescritíveis que testemunhava. Ficou célebre, em 12 Anos de Escravidão, a cena em que a personagem de Lupita Nyong’o era açoitada. Pois acho que O Nascimento de uma Nação vai bem mais longe na tarefa de elucidar a plateia sobre as barbaridades de que consistia o dia a dia dos escravos.
Não sou especialista na matéria mas leio o que posso sobre ela, porque me atordoa que o Brasil tenha sido, por larga margem, o último país ocidental a abolir a escravidão, e porque me parece que muitos dos vícios herdados da escravidão nunca chegaram a ser abolidos. Pessoalmente, então, acho necessário que os países que têm a escravatura em sua história sejam confrontados sem rodeios com seu passado. Nos Estados Unidos, a produção de algodão cresceu sem pausa entre os anos 1810 e 1860 sem que se usasse nenhuma inovação tecnológica no plantio ou na colheita: o aumento foi obtido exclusivamente pelo emprego cada vez mais intenso de violência contra os escravos. Ou seja, não há exagero na encenação de Nate Parker. E gosto de certos aspectos dela, em particular das muitas cenas que quase parecem dioramas, com os escravos perfilados, parados, olhos no chão, à espera – de uma decisão, uma ordem ou um castigo, mas sempre sem qualquer poder sobre si. Gosto também da interpretação de Armie Hammer, que mistura a repugnância de Sam consigo mesmo por se estar corrompendo com a satisfação de ficar à vontade para exercer seu direito de fazer o que bem entende com seus escravos.
O roteiro de Parker, porém, é melodrama puro – e não digo isso como elogio. Não há truque sentimental que ele não explore (no que, aliás, alinha-se com outros melodramas de intenção “inspiradora” como o próprio 12 Anos de Escravidão e também O Mordomo da Casa Branca e Selma: Uma Luta pela Igualdade). O objetivo é chegar ao motivo pelo qual Nat Turner passou à história: a insurreição de escravos que ele liderou em 1831, que durou dois dias e na qual cerca de sessenta brancos foram assassinados de maneiras arrepiantes. Não é difícil compreender as razões de tal violência, e não há quem possa afirmar que, no lugar de Nat e seus correligionários, não teria sido tomado pela mesma febre. Nat, inclusive, foi uma figura muito admirada pela vertente mais radical do movimento pelos direitos civis dos negros na década de 60, na qualidade de proto-combatente da causa. Bem mais difícil é enxergar em Nat e no massacre a santificação que Nate Parker vê neles. Para chegar a essa visão, ele comete pelo menos uma supressão histórica importante: em nenhum momento, os rebeldes são vistos matando as mulheres e as crianças incluídas entre as vítimas, já que isso provavelmente abalaria um tanto a simpatia da plateia pelo herói. Não há maneira fácil de equacionar obscenidades como a escravidão e a crença na supremacia branca. Mas omitir para descomplicar não parece ser o caminho. De um jeito estranho, acabam-se criando novas sombras no lugar de mais esclarecimento.
Trailer
O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO (The Birth of a Nation) Estados Unidos, 2016 Direção: Nate Parker Com Nate Parker, Armie Hammer, Aja Naomi King, Roger Guenveur Smith, Jackie Earle Haley, Penelope Ann Miller, Dwight Henry, Gabrielle Union, Mark Boone Junior Distribuição: Fox |