
Matt Damon deita e rola no papel de um farsante sincero
Se você deixou este filme de Steven Soderbergh escapar (e muita gente deixou), trate de buscá-lo no Netflix e prepare-se para duas horas fabulosas na companhia de Matt Damon. Fabulosas em mais de um sentido, aliás: o personagem (verídico) que Damon interpreta é um executivo do setor americano dos derivados de milho que contou mil histórias ao FBI sobre corrupção, cartéis, espionagem industrial etc. etc. – todas fábulas saídas da cabeça dele. O problema é que o FBI acreditou nas histórias. E depois acreditou nas histórias que o sujeito contou para desmentir as primeiras histórias, e depois nas terceiras histórias, que desmentiam as segundas histórias – até ninguém mais conseguir desatar o nó dessa meada. Matt Damon, como de hábito, está impecável, e são ótimas também as participações de Scott Bakula e Joel McHale como os agentes do FBI que tiveram de descascar esse abacaxi. Além disso, Melanie Lynskey (a vizinha doidinha de Charlie Sheen em Two and a Half Men) dá um show como a mulher do mentiroso. O que realmente faz toda a diferença, porém, é a maneira como Soderbergh dirige o filme: com uma imensa curiosidade por seu protagonista, e também com absoluta desprevenção.
Leia a seguir a resenha que publiquei quando o filme foi lançado nos cinemas:
Minto, portanto existo
O Desinformante! trata de um homem que enrolou o FBI em um novelo de invenções. Para o diretor Steven Soderbergh, ele apenas manifestou de forma extrema uma necessidade básica de qualquer ser humano: a de se apresentar aos outros sob disfarce
Jovial, simpático e falante, Mark Whitacre (Matt Damon) era um dos vice-presidentes da gigante dos derivados do milho ADM quando entrou na órbita do FBI. Mark avisou a direção da sua empresa que os rivais japoneses tinham um espião em suas fileiras, e que este vinha contaminando sua produção. A direção resolveu notificar os agentes federais. Um deles, o honesto e paciente Brian Shepard (Scott Bakula, em rara oportunidade de mostrar o grande ator que é), foi à casa de Mark entrevistá-lo e saiu de lá com um caso para fazer história nas investigações de fraudes corporativas: segundo o executivo, o verdadeiro problema é que sua empresa e as concorrentes internacionais se reuniam periodicamente para lotear o mercado entre si e fixar preços. Ou seja, formavam um cartel. Nos anos seguintes, o ebuliente Mark gravou conversas e reuniões em áudio e vídeo, forneceu documentos e revelou histórias aos agentes federais. Muitas histórias, e quase nenhuma delas verdadeira, como descobriu o FBI no momento em que começou a efetuar prisões. E depois descobriu de novo, e mais uma vez, e outra ainda: Mark Whitacre, o protagonista de O Desinformante!, era (e talvez ainda seja) um mitômano. Começou a mentir quando criança e nunca mais parou, criando camadas de invenções que se sobrepunham e se entrecruzavam, abarcando todos os aspectos de sua vida.
É possível argumentar que um homem que usa um topete falso está dando uma pista inequívoca de que acredita poder enganar os outros sobre qualquer coisa. Mas, na encenação muito divertida do diretor Steven Soderbergh, as perucas de má qualidade são regra entre os executivos do agronegócio em Decatur, no estado de Illinois, uma daquelas cidades maçantes do Meio-Oeste americano. São todos indignos de crença, ou não? Como até os penteados vêm politizados, pode-se ter a impressão de que O Desinformante! é uma denúncia da ganância corporativa. A má conduta da ADM, porém, é um dado periférico. O que fascina Soderbergh é a indevassável vida interior de Mark, e a maneira como toda pessoa, mitômana ou não, adota alguma espécie de disfarce com que se apresentar aos outros.
Na interpretação irretocável de Matt Damon, o rechonchudo e bigodudo Mark, vestido em ternos de tecido excelente e alfaiataria medíocre, poderia ser só mais um produto do que se supõe ser a busca americana por produtividade e conformidade. Mas, na narração que acompanha o filme, seus pensamentos disparam em todas as direções – a obsessão dos japoneses por calcinhas de colegiais, borboletas que imitam outras, os truques dos ursos-polares para esconder seu focinho preto. Todos convergem para a ideia de dissimulação, e denotam também uma curiosidade intelectual, uma inquietação com a vida, que o personagem não sabe satisfazer. Até o objeto de sua vida profissional, o milho, é um paradigma do mimetismo, já que está em toda a dieta americana mesmo quando não parece estar. A certa altura de sua confusão com o FBI, Mark foi diagnosticado como bipolar. Esse dado, porém, não é essencial. Para O Desinformante!, ele representa só uma forma mais extrema de uma necessidade humana inescapável: a de não ser só o que se parece.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 14/10/2009
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
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© Abril Comunicações S.A., 2009
O DESINFORMANTE!
(The Informant!)
Estados Unidos, 2009
Direção: Steven Soderbergh
Com Matt Damon, Scott Bakula, Joel McHale, Tony Hale, Melanie Linskey, Thomas F. Wilson, Ann Dowd, Clancy Brown