
Visto daqui, o vilarejo desta série inglesa parece ficar em outro planeta
Escritora pouco lembrada hoje em dia, a inglesa Barbara Pym compôs uma obra excelente – soberba, na verdade – durante a década de 1950, falando exclusivamente de vidas insignificantes: nos seus livros, vigários, mulheres já não tão jovens e ainda solteiras, vizinhas solidárias, tias aborrecidas e professores primários vivem seus pequenos dramas pessoais, dos quais Barbara tirava observações de grande perspicácia, além de abundantes possibilidades cômicas. Não sem razão, Barbara é considerada uma espécie de Jane Austen do pós-guerra (e por isso mesmo a década de 60 a considerou “fora de moda” e a colocou de escanteio). Pois muito desse espírito do humor inglês, o de identificar como extraordinário o comportamento das pessoas comuns, está presente em Doc Martin, uma série produzida a partir de 2004, que tem seis das suas deliciosas sete temporadas disponíveis no Netflix.
Martin Ellingham (o genial Martin Clunes) é um cirurgião brilhante que, ao desenvolver um súbito medo de sangue, abandona Londres para virar clínico geral em Portwenn, uma minúscula cidadezinha costeira da Cornuália onde, em garoto, ele passava os verões em companhia de sua tia Joan (Stephanie Cole). Apesar de sua fobia (que ele mantém em segredo absoluto), Martin é um médico excelente. Mas é brusco, inflexível, impaciente, antipático, mais lógico que um vulcano e completamente desprovido de qualquer vestígio de senso de humor. Os moradores cheios de manias de Portwenn o põem louco: ele sobe pelas paredes com as conversinhas de esquina, as queixas absurdas que chegam ao seu consultório, a incompetência da sua recepcionista (Lucy Punch na primeira temporada, felizmente substituída por Katherine Parkinson nas temporadas seguintes), a picaratagem do encanador Bert Large (Ian McNeice), os delírios da farmacêutica Mrs. Tischell (Selina Cadell).
Mas – e sempre há um mas – Martin tem um fraco pela professora primária Louisa (Caroline Catz), que tem um fraco por ele. Boa sorte, porém, em tentar ter um romance com um sujeito que, depois de dar um beijo, pergunta se você segue uma rotina adequada de higiene dental. (Outro exemplo sensacional da falta de habilidades sociais de Martin: num funeral, ele sobe ao púlpito da igreja para homenagear a pessoa morta. E começa: “A maior parte das pessoas aqui presentes é clinicamente obesa. Tal como vocês, Sicrana estava acima do peso, não praticava exercícios e tinha uma dieta ruim.)
Com uma estrutura bem solta – em geral, há um pequeno mistério médico em cada episódio, que serve como pretexto para seguir mais um desenvolvimento nas vidinhas dos personagens –, Doc Martin vicia de maneira quase imperceptível. A graça, claro, é que, embora Martin continue a bufar e a revirar os olhos com as idiossincrasias do pessoal de Portwenn, ele sem querer já virou um deles. Nem seus pacientes podem se imaginar sem Martin, nem Martin– se usasse a imaginação – poderia se imaginar sem seus pacientes.